quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Crônica de um Velho Solar da Educação (Um olhar d’alma sobre o IEMG)

 


Gente, que coisa! Que trem doido, meu Deus! A gente que nasceu e vive por estas Alterosas, come o pão de queijo da tradição, bebe o café que acorda defuntos e pensa que sabe tudo de história. Pensa que as pedras são só pedras, que casas e edifícios são simples construções. Engano bobo, sô! Há certos prédios, certas instituições, que não são feitas só de tijolo e argamassa, mas de pura saudade cívica e de uma tal teimosia em ser brasileiras que chega a comover este meu coração paulista de viajante.

O tal do IEMG, o Instituto de Educação de Minas Gerais. A nossa antiga e eterna Escola Normal Modelo de Belo Horizonte. Um nome comprido, meio solene, que cheira a cartório e a passado. Mas que passado, meu caro!

Fundado em 1906, batizado por Seu João Pinheiro e Seu Carvalho Britto com toda a pompa da época. Já começava com pose, vejam só! E o lema, que coisa séria: “Educar-se para educar”. Imagino a rigidez, as moças de uniforme azul e branco, só a nata da elite, todas aprendendo a arte do magistério como se fosse etiqueta social ou receita de quindim. Era a escola-referência do Estado, um farol de onde saíam as professoras-mestras para moldar a meninada, garantindo que fossem, no futuro, verdadeiros cidadãos republicanos. Um tanto exclusivista, é verdade. Mas o Brasil, meu caro, é cheio dessas contradições. É o avesso e o direito do mesmo pano.

E o tempo, ah, o tempo!

O bonde do progresso faz a curva na Praça Sete, sobe pela Afonso Pena, vira da Goitacazes e chega à João Pinheiro, quase beijando o Palácio da Liberdade. E o IEMG no meio dessa ciranda toda, não para. Dali, de dentro do seu casarão, nascem outras instituições de peso, como a antiga Faculdade de Filosofia, que hoje é a FAFICH da UFMG, coisa de se tirar o chapéu!

E no meio de tanta mudança, sem ser ato repentino, o IEMG vira um mamute bondoso da rede estadual. Não é mais só para a moça de família. Não! Agora, tem criança que nem sabe amarrar sapato; tem moço barbado voltando pro banco da escola (o tal do EJA, vejam só!); tem Ensino Médio, tem o velho e bom Magistério. Uma miríade de almas, um formigueiro de gente miúda e graúda, toda buscando a luzinha da instrução. A escola agora quer universalizar, essa palavra meio pedante que no fundo só quer dizer: incluir todo mundo. E nisso, ela acerta em cheio.

É um espanto ver como a educação, para eles, é coisa de vida ou morte. Não param no tempo, esses mineiros. Buscam o diálogo, o aprofundamento, o enfrentamento dos problemas – que não são poucos, cá pra nós! – e a valorização daquela iniciativa pedagógica que deu certo. É um potencializar saberes que não tem fim, uma busca de ser cada vez mais brasileiro e cada vez mais gente.

E não é só sala de aula, não, que é o que mais me agrada. O IEMG não esqueceu do Espírito! É lugar de gente criativa, tem a alma da Emília do Sítio do Pica Pau Amarelo. Quem não se lembra dos belos recitais, em BH e até na antiga capital do Brasil, dos "Jovens Cantores do IEMG"? Foi, provavelmente, o coro mais afinado da cidade. E a fanfarra, meu Deus! Moçada animada que bota ordem e alegria fechando com garbo e elegância os desfiles de Sete de Setembro na Afonso Pena. Sem contar a Rádio Educare.47, a voz da escola, com quase uma centena de programas no ar. E a Revista Pedagógica, que durou dez anos! Tudo isso é a mais pura e verdadeira cultura, sabe? Aquela coisa essencial que faz a gente respirar fundo e sentir que está vivo. Que coisa bonita!

O IEMG, no fim das contas, foi e continua a ser Palco. Palco de reforma, de transformação, de revolução na lida do ensino. O objetivo? Fazer gente. Indivíduos autônomos, produtivos e, veja bem, responsáveis. Querem que os alunos sejam sujeitos, donos da sua história, capazes de ir além das visões tradicionais que a gente ouve no botequim. Querem que valorizem o espaço comunitário, que a escola seja um centro irradiador de inclusão.

É isso que é o Brasil, meu amigo: um misto de rigidez antiga e de uma vontade moderna de abraçar o mundo. O IEMG, com seus cento e tantos anos, é um pedacinho de Minas, um pedacinho do Brasil, teimando em educar para que se eduque e, acima de tudo, para que se viva bem.

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Cartilha com orietações para o trabalho no exterior





Ministério das Relações Exteriores, por meio da Divisão de Comunidades Brasileiras e Assistência Consular (DAC), é um dos atores diretamente envolvidos no enfrentamento ao tráfico de pessoas, assegurando a assistência para brasileiros/as em situações complexas como violência doméstica, desaparecimento, inadmissões, distúrbios psiquiátricos, tráfico de pessoas, conflitos sociais, repatriação, crises humanitárias, entre outros, respeitando-se os tratados internacionais vigentes e a legislação do país estrangeiro.




Em razão desse papel de destaque no contato com brasileiros/as em outros países, a DAC, a Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes (CGETP) do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e a Organização Internacional para Migrações (OIM) elaboraram Cartilha para orientar e informar sobre direitos e serviços disponíveis aos nacionais quando estiverem fora do Brasil, assim como apresentar recomendações para realizar uma viagem segura.

Para acessar a cartilha, clique no link abaixo:

https://www.gov.br/mre/pt-br/embaixada-nicosia/cartilha-trafico-de-pessoas-e-orientacoes-para-o-trabalho-no-exterior

Estas sinistras festas de Natal

Estas sinistras festas de Natal

Por Gabriel García Márquez

Ninguém mais se lembra de Deus no Natal. Há tanto barulho de cornetas e de fogos de artifício, tantas grinaldas de fogos coloridos, tantos inocentes perus degolados e tantas angústias de dinheiro para se ficar bem acima dos recursos reais de que dispomos que a gente se pergunta se sobra algum tempo para alguém se dar conta de que uma bagunça dessas é para celebrar o aniversário de um menino que nasceu há 2 mil anos em uma manjedoura miserável, a pouca distância de onde havia nascido, uns mil anos antes, o rei Davi.

Cerca de 954 milhões de cristãos – quase 1 bilhão deles, portanto – acreditam que esse menino era Deus encarnado, mas muitos o celebram como se na verdade não acreditassem nisso. Celebram, além disso, muitos milhões que nunca acreditaram, mas que gostam de festas e muitos outros que estariam dispostos a virar o mundo de ponta cabeça para que ninguém continuasse acreditando. Seria interessante averiguar quantos deles acreditam também no fundo de sua alma que o Natal de agora é uma festa abominável e não se atrevem a dizê-lo por um preconceito que já não é religioso, mas social.

O mais grave de tudo é o desastre cultural que estas festas de Natal pervertidas estão causando na América Latina. Antes, quando tínhamos apenas costumes herdados da Espanha, os presépios domésticos eram prodígios de imaginação familiar. O menino Jesus era maior que o boi, as casinhas nas colinas eram maiores que a Virgem e ninguém se fixava em anacronismos: a paisagem de Belém era complementada com um trenzinho de arame, com um pato de pelúcia maior que um leão que nadava no espelho da sala ou com um guarda de trânsito que dirigia um rebanho de cordeiros em uma esquina de Jerusalém.

Por cima de tudo, se colocava uma estrela de papel dourado com uma lâmpada no centro e um raio de seda amarela que deveria indicar aos Reis Magos o caminho da salvação. O resultado era na realidade feio, mas se parecia conosco e claro que era melhor que tantos quadros primitivos mal copiados do alfandegário Rousseau.

A mistificação começou com o costume de que os brinquedos não fossem trazidos pelos Reis Magos – como acontece na Espanha, com toda razão –, mas pelo menino Jesus. As crianças dormíamos mais cedo para que os brinquedos nos chegassem logo e éramos felizes ouvindo as mentiras poéticas dos adultos.

No entanto, eu não tinha mais do que cinco anos quando alguém na minha casa decidiu que já era hora de me revelar a verdade. Foi uma desilusão não apenas porque eu acreditava de verdade que era o menino Jesus que trazia os brinquedos, mas também porque teria gostado de continuar acreditando. Além disso, por uma pura lógica de adulto, eu pensei então que os outros mistérios católicos eram inventados pelos pais para entreter aos filhos e fiquei no limbo.

Naquele dia – como diziam os professores jesuítas na escola primária –, eu perdi a inocência, pois descobri que as crianças tampouco eram trazidas pelas cegonhas desde Paris, que é algo que eu ainda gostaria de continuar acreditando para pensar mais no amor e menos na pílula.

Tudo isso mudou nos últimos 30 anos, mediante uma operação comercial de proporções mundiais que é, ao mesmo tempo, uma devastadora agressão cultural. O menino Jesus foi destronado pela Santa Claus dos gringos e dos ingleses, que é o mesmo Papai Noel dos franceses e aos que conhecemos de mais. Chegou-nos com o trenó levado por um alce e o saco carregado de brinquedos sob uma fantástica tempestade de neve.

Na verdade, este usurpador com nariz de cervejeiro é simplesmente o bom São Nicolau, um santo de quem eu gosto muito e porque é do meu avô o coronel, mas que não tem nada a ver com o Natal e menos ainda com a véspera de Natal tropical da América Latina.

Segundo a lenda nórdica, São Nicolau reconstruiu e reviveu a vários estudantes que haviam sido esquartejados por um urso na neve e por isso era proclamado o patrono das crianças. Mas sua festa é celebrada em 6 de dezembro, e não no dia 25. A lenda se tornou institucional nas províncias germânicas do Norte no final do século 18, junto à árvore dos brinquedos e a pouco mais de cem anos chegou à Grã-Bretanha e à França.

Em seguida, chegou aos Estados Unidos, e estes mandaram a lenda para a América Latina, com toda uma cultura de contrabando: a neve artificial, as velas coloridas, o peru recheado e estes quinze dias de consumismo frenético a que muito poucos nos atrevemos a escapar.

No entanto, talvez o mais sinistro destes Natais de consumo seja a estética miserável que trouxeram com elas: esses cartões postais indigentes, essas cordinhas de luzes coloridas, esses sinos de vidro, essas coroas de flores penduradas nas portas, essas músicas de idiotas que são traduções malfeitas do inglês e tantas outras gloriosas asneiras para as quais nem sequer valia a pena ter sido inventada a eletricidade.

Tudo isso em torno da festa mais espantosa do ano. Uma noite infernal em que as crianças não podem dormir com a casa cheia de bêbados que erram de porta buscando onde desaguar ou perseguindo a esposa de outro que acidentalmente teve a sorte de ficar dormido na sala.

Mentira: não é uma noite de paz e amor, mas o contrário. É a ocasião solene das pessoas de quem não gostamos. A oportunidade providencial de sair finalmente dos compromissos adiados porque indesejáveis: o convite ao pobre cego que ninguém convida, à prima Isabel que ficou viúva há 15 anos, à avó paralítica que ninguém se atreve a exibir.

É a alegria por decreto, o carinho por piedade, o momento de dar presente porque nos dão presentes e de chorar em público sem dar explicações. É a hora feliz de que os convidados bebam tudo o que sobrou do Natal anterior: o creme de menta, o licor de chocolate, o vinho passado.

Não é raro, como aconteceu frequentemente, que a festa acabe a tiros. Nem tampouco é raro que as crianças – vendo tantas coisas atrozes – terminem acreditando de verdade que o menino Jesus não nasceu em Belém, mas nos Estados Unidos.

Machuca



Machuca é uma produção conjunta entre Chile, Reino Unido, França e Espanha  de 2003, dirigida por Andrés Wood. Responsável também pelo roteiro e produção. O elenco é composto por Ariel Mateluna, Manuela Martelli, Aline Kuppeheim, entre outros.

O título do filme faz uma referência a um nome extremamente comum no Chile. Machuca, o Pedro, nosso personagem principal representaria os milhares de meninos que vivem um pouco esquecidos pela sociedade e pelo governo. Ele é um garoto comum como tantos outros.

A história pode ser resumida da seguinte forma: no ano de 1973, durante o governo de Salvador Allende,  Gonzalo Infante (Matías Quer) (de origem europeia) estuda no Colégio Saint Patrick na mais importante escola da capital chillena.  Gonzalo é um menino rico que vive na região mais nobre da cidade com seus pais e sua irmã. 

Durante esse período, o Chile passa por uma série de reformas sociais que objetivam garantir a justiça social para todas as classes. Dentro dessa perspectiva, o padre McEnroe (Ernesto Malbran), o diretor do colégio, implementar muitas mudanças na escola. A mais importante foi a de incluir jovens carentes\pobres como novos alunos da escola  Saint Patrick. 



Pedro Machuca (Ariel Mateluna) é um desses jovens pobres (de origem indígena) que vão estudar no colégio de elite. Nesse novo ambiente, ele se sente  deslocado. Os valores do grupo dominante não sãoe os seus. O que a escola valoriza, ele não domina. Por ser tão diferente, Machuca sofre com os novos colegas. É provocado. Mas, nesse novo ambiente, pouco amistoso, ele conhece  Gonzalo com quem terá  uma verdadeira amizade, apesar das grandes diferenças sociais\culturais entre eles.




No filme “Machuca”,  podemos perceber duas ideias de educação: a tradidois garotos de 11 anos, Gonzalo Infante e Pedro Machuca, que vivem em  mundos separados por uma muralha invisível que alguns sonham em derrubar na intenção de construir uma sociedade mais justa. A sociedade está instalada em meio a uma ideologia onde os ricos serão sempre mais ricos e para eles as melhores coisas. Enquanto aos pobres lhe restam as piores condições de vida, e o que é pior, sem direito a educação. É a velha história de uma classe mais privilegiada dominando outra menos favorecida.   
A contradição desta ideologia é proporcionada pela  Escola Inclusiva, que deve tentar auxiliar, na medida do possível, a constituir um sujeito cidadão, para uma sociedade para todos, como o padre McEnroe no filme, diretor de um colégio particular de elite onde Gonzalo estuda. Em meio à política comunista instalada por Salvador Allende no país, o diretor decide fazer uma integração entre estes dois universos, abrindo as portas do colégio para os filhos das famílias do povoado. É assim que Pedro Machuca ,vai parar na mesma sala de Gonzalo, ponto de partida para uma amizade cheia de descobertas e surpresas ,apesar do abismo de classe existente entre eles. , que acontece paralelamente ao clima de enfrentamento que vive a sociedade chilena na violenta transição de Allende para Pinochet. Delinea-se uma visão através do filme  um problema social , um problema público - a questão da inclusão social - que vem tomando forma e exigindo novas práticas educacionais e sociais. Incluir é criar, criação no sentido das intersecções de afetos, áreas, valores, conceitos, saberes e pessoas.
Tentar implantar a escola inclusiva, parece-nos de início um caminho árduo de ser trilhado. Pois é preciso se fazer uma análise crítica profunda das realidades sociais de cada escola e principalmente de cada aluno. Isso numa sociedade capitalista é algo quase impossível, porque as pessoas quanto mais têm, mais querem, surgindo assim as grandes desigualdades sociais e constantes lutas. È como se comparássemos com a teoria da filosofia do sujeito. Pois segundo Nietzsche o sujeito é apenas uma peça ficcional a mais na luta dos fracos contra os fortes, no qual os primeiros estão sempre ganhando dos segundos. Ou seja, é mais uma estratégia da ovelha para introjetar culpa no lobo. Pois A ovelha (o fraco) usa toda sua astucia para enfraquecer e dominar o lobo(o forte). Sendo o forte é aquele, cujos desejos, paixões e vontades afirmam a vida. Já as ovelhas condenam essas vontades, submetendo-se assim à razão, impondo deveres e castigos aos fortes, induzindo-os a formar uma má consciência. E esse contexto se encaixa perfeitamente dentro da escola tradicional pois é a partir do autoritarismo que se forma esse sujeito de má consciência, pois o indivíduo fica impossibilitado de auto se determinar. Já ao contrário a escola inclusiva(progressista) se está sob forma a forma de antiautoritarismo, valorizando a experiência( impirismo) com base da relação educativa e a idéia de autogestão pedagógica. E através da aprendizagem grupal discussões, assembléia; que são incutidos nos alunos conteúdos de ensino de práticas sociais ligadas ao povo.
É a partir dessa inclusão, dessa mesclagem de indivíduos de várias classes, um vivenciando o problema, as dificuldades, sejam elas sociais, culturais, etc. Pois é a partir da experiência de vida que essa escola possa formar sujeitos autênticos responsáveis pelos seus atos e principalmente formar sujeitos capazes de desenvolver o conceito de solidariedade, e parte da ação para prática. 

O filme retrata uma tentativa de uma democratização dentro da escola. A idéia é boa só teremos uma sociedade mais justa se começarmos a formar alunos solidários uns ajudando os outros. A escola inclusiva é uma tarefa difícil e um caminho árduo, mas é a única esperança que temos para vislumbrar um futuro melhor para todos.       

O Educador com a Palavra na Ponta do Lápis: Uma Crônica de Raymundo Nonato Fernandes

 De todos os personagens do meu livro "Histórias Inspiradoras: as biografias que moldaram o Instituto de Educação de Minas Gerais, uma se destaca. Acredito que é pelo fato de ter conhecido o personagem principal dessa narrativa. É a história de Raymundo Nonato.



A vida, para certas pessoas, parece tecida com o fio de um destino claro, ainda que cheio de curvas. Raymundo Nonato Fernandes, que nasceu lá em Itamarandiba em 1928, no Vale do Jequitinhonha, era um desses.

Décimo terceiro numa lista de diretores, quinto a dirigir o Instituto de Educação de Minas Gerais, o que ele tinha de número ele tinha de palavra. Mestre em filosofia e psicologia, dono de uma cultura que a gente só pode chamar de esmerada, Raymundo não falava: ele encantava. Era um orador com "pleno controle das plateias", como se diz nos livros. O tipo de mineiro que, de tão reservado, quando abria a boca, era para dizer algo que valia o silêncio quebrado.

“Como professor ou conferencista, sua principal arma sempre foi a palavra, por ele manejada com a destreza dos grandes estrategistas.”

Ora, um estrategista que usa a palavra para falar de amor e escola.

Ele cresceu no meio de uma alegria bonita. O pai, Olympio Fernandes Filho, era um gênio autodidata, um animador cultural. Imagino a casa: cheia de livros, talvez um piano desafinado e o cheiro bom de café, com a poesia flutuando no ar. É nesse caldo que Raymundo aprende as primeiras letras, não numa sala de aula fria, mas na sala de estar de D. Quitinha, lá perto do Serro.

Naquele tempo, a escola isolada funcionava na Praça da Matriz, e quem o alfabetizou mesmo foi Zeca de Adelaide, uma amiga da família, com 17 anos. A formação de Raymundo, como a de muitos grandes, começou no íntimo, no aconchego da casa e dos amigos, antes de ir para as "escolas reunidas" em Santa Maria do Suaçuí, acompanhando o trabalho do pai.

Aos doze, o seminário. Nove anos de disciplina, estudo e a certeza de um caminho. Mas, como a vida é uma ironia de contínuos desvios, uma questão política obriga a família a se mudar para a capital. Aquele breve afastamento do claustro foi o suficiente para o destino, sorrateiro, sussurrar: "Não serás padre, Raymundo. Serás educador."

Lá se foi ele fazer o Exame de Madureza — um nome que já é uma crônica em si. E na Faculdade de Filosofia, no edifício Acaiaca, encontra Maria de Lourdes, de tradicional família mineira. O amor, como o conhecimento, também exige um certo bacharelado e licenciatura. Casaram-se e tiveram quatro filhos.

Na capital, trabalhou, deu aulas particulares, foi fiscal de barreiras. Mas o seu púlpito era a educação. Ao lado de Pedro Parafita de Bessa, foi para a Secretaria de Educação e, vejam só, ajudou a fundar e dirigir um ginásio em sua Itamarandiba natal, tornando-o farol para o Norte de Minas. A educação como um ir e vir, um eterno retorno à terra de origem.

Quando chegou à direção geral do Instituto de Educação de Minas Gerais (1967 a 1977), a escola vivia uma "grave crise econômica e de grande agitação política". Pois Raymundo Nonato, o homem da palavra elegante, mostrou-se também um conciliador pragmático.

Se a educação se faz com amor, e o amor está no lar, que se traga o lar para a escola! Criou a Aciemg, a Associação Comunitária, com uma filosofia deliciosa:

“Os pais tornam-se amigos dos professores de seus filhos no lugar de criar problemas.”

É quase uma frase de almanaque, dessas que a gente guarda para os momentos de cinismo. Mas Raymundo acreditava de verdade. Sua gestão foi feita de reformas no prédio, de reorganização de órgãos internos, de criação do Curso de Pedagogia, e daquela convicção simples e imensa de que: “a sala de aula é o berço da nacionalidade.”

E não é que o I Congresso de Orientação e Ensino, feito por ele, deu origem à revista AMAE Educando, que circulou por quase meio século? A palavra, de novo, gerando o futuro.

Sua saída do IEMG em 1977, por uma "atitude equivocada" do secretário da época, foi apenas mais uma curva. O homem que tinha nascido para ser padre, mas se tornou educador, nunca parou. Foi membro titular do Instituto Histórico e Geográfico, onde ocupou a cadeira do patrono Aurélio Pires.

Recebeu insígnias, medalhas, comendas. Mas seu último ato de glória foi um livro, em 2018: Caminhos da Educação. Uma obra que, de certa forma, era sua própria crônica, seu diário de bordo. Raymundo Nonato Fernandes, o mineiro elegante, o contador de histórias, o estrategista da palavra, soube que a educação, como a vida, é um caminho que se faz escrevendo, falando, amando e, sobretudo, deixando a porta aberta para que a comunidade entre.

Faleceu em 1º de abril de 2020. Mas o sorriso, a fala elegante e a convicção de que a escola é o alicerce de tudo, isso fica. Fica na memória, como uma boa crônica lida no jornal da manhã.



segunda-feira, 13 de outubro de 2025

O uniforme azul e branco das normalistas

 


A gente, quando pensa no Instituto de Educação de Minas Gerais (antiga Escola Normal Modelo de Belo Horizonte) e nas jovens estudantes que de lá saíram para alfabetizar e instruir as crianças Minas Gerais na primeira metade do século passado, logo vem à cabeça aquele uniforme clássico: saia e blusa azul e branco, uma coisa sóbria, mas com seu charme. É uma imagem tão forte que ficou, grudada na memória da gente como chiclete quando gruda no cabelo. Mas, ah, a vida tem dessas coisas, de esconder o começo. E se a gente for lá, nos primórdios da história da educação republicana em Minas Gerais, nos primeiros álbuns de fotografia daquela Escola Modelo, vamos descobrir que o começo foi outro, bem diferente. Foi um eco manso da belle époque, trazido para as terras poeirentas da nova Capital.

E que silhueta era aquela! Um vestido longo, cobrindo o tornozelo com um pudor elegante, daqueles que não precisam de muito para dizer muito. A cintura, ah, a cintura era o ponto de honra. Bem marcada, às vezes por um cinto discreto, de gorgurão que nem se notava, ou pelo próprio corte do tecido, que abraçava o corpo sem aperto, mas com compostura.

As saias, essas sim, eram um espetáculo de recato: amplas, como corolas de flor que se abre devagar, cheias de tecido por baixo, de anáguas que davam volume, um suave balão a envolver as pernas. E as mangas, compridas, comportadas, chegando certinhas no punho. E a gola, alta, às vezes com um rendado singelo, um frufru discreto, como um segredo bem guardado.

Nos pés, sapatos fechados, quase sempre pretos, de couro lustroso, com um saltinho modesto, pra dar um ar mais aprumado, sem ousadia. E as meias, escuras, completando aquela aura de recato, de seriedade. A moldura perfeita para um retrato antigo, desses que a gente guarda com carinho.

Mas não se engane. Apesar de toda essa reverência à moda da época, havia ali uma busca pela simplicidade, pela funcionalidade. Afinal, era uniforme de escola, para o dia a dia das moças que sonhavam em ensinar as primeiras letras. As rendas mirabolantes, os bordados suntuosos dos vestidos da alta sociedade ficavam para as festas, para os bailes iluminados a gás. Ali, no pátio da Normal, o que importava era a praticidade, a sobriedade que condizia com a seriedade do aprendizado.

E que interessante essa história do branco para ocasiões especiais, como o funeral do Presidente João Pinheiro em 1907. A formalidade na cor da pureza, em vez do luto preto tradicional. Uma ousadia sutil, talvez? Uma nova mentalidade que começava a despontar, um respeito silencioso, mas com uma roupagem diferente.

E as cores, o branco e o azul marinho, tão clássicos. Mas aí a gente olha outras fotos, e lá estão elas, as mesmas normalistas, vestidas de branco imaculado. Por que será? Talvez fosse o calor da nossa Minas, já castigando mesmo naqueles tempos. Ou quem sabe, uma praticidade maior para lavar e manter impecável aquela brancura toda, símbolo de dedicação.

Fico imaginando essas jovens, com seus vestidos longos e seus sonhos de futuro, circulando por essa Belo Horizonte que ainda cheirava a terra molhada e a obra inacabada. E o uniforme, mais do que uma vestimenta, era um elo, uma identidade, um prenúncio do papel importante que essas mulheres teriam na construção da nossa história. Um branco e azul (ou só branco) que carregava em suas linhas a seriedade do aprendizado e a esperança de um futuro mais instruído. Coisas de um tempo em que até o vestir falava, em que a modéstia e a funcionalidade dançavam um tango lento e elegante.

 

domingo, 12 de outubro de 2025

Minas e a Educação: uma breve consideração histórica (Ronaldo Campos)

 





 


Ao folhear as páginas da história da educação em Minas Gerais, um leitor desavisado poderia jurar que o ano de 1906 marcou o "big bang" das escolas por aqui. Afinal, as primeiras "instituições" (ainda sem nome, numeradas como "Primeiro Grupo Escolar", "Segundo Grupo", e por aí vai, antes de ganharem batismos mais solenes como "Barão do Rio Branco", “Afonso Pena”, “Olegário Maciel”, etc) e a gloriosa Escola Normal Modelo (hoje Instituto de Educação) surgiram no início do século XX. Mas, como em toda boa trama mineira, a história é bem mais intrincada, e suas raízes mergulham fundo no passado colonial.

Esqueça a linearidade, a progressão suave. O caminho da educação em Minas é um mapa salpicado de recomeços e rupturas, uma paisagem acidentada como as próprias serras do estado.

 

 

Primórdios ou Quando Minas Ignorava a Cartilha Europeia

 

No século XVIII europeu, a escola já era vista como um investimento social de peso, o berço de um novo ethos, de condutas civilizadas, saberes escolares e até de um patriotismo recém-cunhado. Enquanto isso, na Capitania de Minas, a realidade era outra. Até meados do século XVIII, o cenário educacional era um verdadeiro deserto. Mas por que tamanha aridez?

A colonização tardia, movida pela febre do ouro no final do século XVII, explica parte do mistério. A Coroa portuguesa, com sua política de "olho vivo", proibiu a instalação de ordens religiosas na capitania, o que, de quebra, engavetou a ação pedagógica dos jesuítas, exímios construtores de colégios. Some-se a isso o número ínfimo de mulheres no início do ciclo da mineração – o que significa poucas famílias estabelecidas – e a própria natureza da população, mais interessada no brilho fácil do ouro do que nos valores da cultura letrada ou na educação dos filhos. Uma gente, digamos, "rude e desprovida de interesse pedagógico".

 

 

Das Escolas Domésticas ao Seminário de Mariana

 

A ausência de escolas institucionalizadas, porém, não significou um vácuo educacional total. As chamadas "escolas domésticas" cumpriam seu papel, com mães alfabetizadoras e "tios-padres" encarregados das primeiras letras. A elite, claro, seguia o roteiro: depois das noções básicas, o caminho era o Rio de Janeiro ou a Bahia, para os educandários jesuítas, e, para os mais afortunados, Coimbra, onde aterrissavam como padres ou doutores.

O jogo começou a virar a partir de 1750, um marco: a fundação do Seminário de Mariana. Por muito tempo, foi o único farol educacional para a juventude mineira, destinado a formar clérigos e preparar jovens para Coimbra. No fim do século XVIII, surgiram outras iniciativas, mais modestas, como o Colégio do Semidouro (para meninos), o Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição de Macaúbas e o Recolhimento São João da Chapada (ambos para moças). E, em 1835, a serra do Caraça viu nascer o famoso colégio dos padres lazaristas, que mais tarde daria origem a uma escola apostólica e um seminário.

 

 

Pombal, Jesuítas e Aulas Avulsas: A Saga de um Ensino Disperso

 

As reformas pombalinas (1759-1772) trouxeram consigo a fatídica expulsão dos jesuítas, um golpe duro para a educação em outras partes do Brasil onde eles comandavam centros escolares. Em Minas, a repercussão foi menor, já que os jesuítas não haviam fincado raízes educacionais por aqui. Seminários e colégios de outras ordens (Oratorianos, Franciscanos e Carmelitas) seguiram existindo.

O Marquês de Pombal, porém, também idealizou as "aulas régias ou avulsas" de Latim, Grego, Filosofia e Retórica. Eram cursos isolados, sem articulação entre si, ministrados por um único professor. Quase trinta anos depois, o Estado português criou o cargo de Diretor Geral dos Estudos para fiscalizar e nomear professores na colônia, mas a medida não decolou. A educação patinou. Em 1772, veio o "subsídio literário", para bancar o ensino primário e secundário. No entanto, o ensino brasileiro continuou disperso, fragmentado, dependendo de professores leigos e, muitas vezes, despreparados.

 

 

O Século XIX: Cidadania na Sala de Aula e a Lei 13

 

Apesar de todos os percalços, o século XIX trouxe uma virada: a escola passou a ser vista como a grande formadora de cidadãos e de comportamentos coletivos. Essas novas expectativas ecoaram no Brasil, gerando um debate e uma enxurrada de leis para normatizar o sistema educacional e definir políticas públicas.

Em Minas Gerais, a primeira legislação da instrução primária, a Lei número 13 de 28 de março de 1835, estruturou a organização do ensino elementar, instituiu a obrigatoriedade da frequência às aulas e lançou as bases para a formação de professores. A primeira escola normal de Minas, em Ouro Preto, em 1840, teve uma vida intermitente, abrindo e fechando as portas até se firmar definitivamente em 1872.

No Império, a política educacional era, para usar um eufemismo, "descontínua". Faltava um sistema que unificasse as práticas docentes e que investisse de forma sistematizada na instrução pública. O ensino era um mosaico de salas de aula esparsas, sem um fio condutor.


 

 

O Grupo Escolar: Uma Revolução Pedagógica do Campo à Cidade

 

A historiadora Lage nos revela que os primeiros grupos escolares no Brasil, inspirados em modelos europeus e americanos de educação popular, nasceram em São Paulo no final do século XIX. A proposta era radical: reunir escolas isoladas em um "agrupamento", transformando o cenário educacional nacional.

Segundo Saviani (2004), o Grupo Escolar foi um fenômeno tipicamente urbano, enquanto o campo ainda teimava em manter suas escolas isoladas. Eram, sobretudo, eficientes na seleção e formação de elites, com a educação para as massas populares ganhando fôlego apenas com a reforma paulista de 1920.

Esses grupos escolares, também conhecidos como "escolas graduadas", revolucionaram a pedagogia:

  • Classificação dos alunos: Por nível de conhecimento, em turmas supostamente homogêneas (as "classes").
  • Ensino simultâneo: Conteúdos organizados e distribuídos de forma racional, com horários definidos.
  • Sistema de avaliação: Introduzido para medir o progresso.
  • Divisão do trabalho docente: Cada sala, uma série, um professor.
  • Edifício escolar: Um conceito novo, com várias salas de aula.

O ensino primário durava quatro anos, com um currículo enciclopédico que buscava a formação integral: física, intelectual e moral. Utilizava o método intuitivo, com materiais didáticos, laboratórios e museus. Exigia disciplina férrea: assiduidade, asseio, ordem, obediência. E o tempo escolar era rigidamente controlado por calendários. Práticas "ritualizadas" e "simbólicas" como exames, exposições e festas cívicas marcavam o ano letivo.

Mais do que instruir, o grupo escolar tinha um projeto cultural para a nação, educando o caráter através da disciplina social – obediência, asseio, pontualidade, amor ao trabalho, honestidade e respeito às autoridades. Valores essenciais para forjar o espírito de nacionalidade.

O sucesso foi tamanho que o modelo se espalhou pelo Brasil como um rastilho de pólvora: Rio de Janeiro (1897), Pará (1899), Paraná (1903), Minas Gerais (1906), Rio Grande do Norte e Espírito Santo (1908), Mato Grosso (1910), Santa Catarina e Sergipe (1911), Paraíba (1916), Piauí (1920), entre outros. Minas Gerais, nesse grande mapa da educação nacional, foi uma das primeiras a aderir, plantando as sementes do que se tornaria seu robusto sistema educacional. E assim, a história da educação mineira, complexa e cheia de curvas, continua a ser escrita.

Para os interessados, algumas indicações de leitura que nortearam o texto:

 

 

SAVIANI, Dermeval. O legado educacional do “longo século XX” brasileiro. In: SAVIANI, Dermeval (et. al.). O legado educacional do século XX no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2004

 

SOUZA, Rosa Fátima de. Lições da escola primária. In: SAVIANI, Dermeval ( et. al.). O legado educacional do século XX no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2004

 

____________________. Templos de civilização. A implantação da escola primária graduada no Estado de São Paulo ( 1890-1910)São Paulo: UNESP, 1998.

 

VIDAL, Diana Gonçalves (org.). Grupos escolares. Cultura escolar primária e escolarização da infância no Brasil ( 1893-1971). Campinas, SP: Mercado das Letras, 2006

 

VIDAL, Diana Gonçalves. Culturas escolares. Estudo sobre práticas de leitura e escrita na escola pública primária ( Brasil e França, no final do século XIX). Campinas, SP: Autores Associados, 2005

 

 


Professor Albanito Vaz Júnior: o Homem que Fez o Português Virar Valsa

 



Se você encontrar com uma ex-aluna do Instituto de Educação de Minas Gerais – IEMG (que estudou na instituição até o início dos anos 2000). O Instituto, convenhamos, formou uma legião de gente que pensa – pode apostar que, em menos de cinco minutos, o nome dele salta na conversa: Albanito Vaz Júnior. E quando o nome vem à tona, não é para cumprir tabela. É para abrir o álbum de saudades.

Albanito Vaz Júnior é um dos professores mais queridos e lembrados do Instituto de Educação de Minas Gerais (IEMG). As suas aulas e os seus trabalhos são os assuntos principais de qualquer encontro de ex-alunos do Instituto de Educação. Quem pode esquecer dos florilégios meticulosamente pensados e apresentados ao som de valsas no auditório do Instituto? Com o seu jeito único, inspirou centenas de alunas do magistério no Instituto de Educação. Provocou também a curiosidade e o amor pela literatura em meninos e meninas do Colégio Batista Mineiro. 

Albanito, nascido em 1934 e falecido há pouco, em 2018, não era um professor de Português e Literatura. Era um showman da Língua Portuguesa. Um maestro das palavras. Onde mais, se não nas aulas dele, a rigidez da gramática e o voo da literatura se encontravam sob a luz de um palco, com direito a valsa e a florilégios?

Pois é. Os florilégios. Aquelas apresentações meticulosamente ensaiadas no auditório, onde a poesia virava teatro e a plateia, suspensa, esquecia por um instante que estava ali para aprender e não para se emocionar. Ele inspirou centenas de normalistas do IEMG com esse jeito único – um misto de erudito, carrasco (no bom sentido, o que exige) e pândego. No Colégio Batista Mineiro, fez o mesmo, despertando em meninos e meninas o fogo da curiosidade pela literatura.

Formado em Letras Clássicas na UFMG em 1957, Albanito podia ter enveredado pela vida acadêmica sisuda. Mas preferiu a sala de aula, o chão de fábrica do conhecimento. Passou décadas ali, moldando mentes. Aposentou-se compulsoriamente na rede estadual aos setenta anos, mas mandar Albanito para casa era como proibir o sol de nascer: simplesmente não acontecia. Continuou lecionando na rede particular, mantendo a chama acesa.

Ele era o que se pode chamar de um clássico. Extremamente culto, dono de uma oratória que parava o corredor e, pasmem, conservava a disciplina da sala de aula com... bom humor. Sim, o paradoxo mineiro: a cultura da Sorbonne com o acolhimento do abraço. Entrava na luta por uma educação de qualidade, engajado no Sinpro Minas, publicando seus artigos, defendendo um país mais justo e soberano até o último suspiro.

Mas o que fica, o que faz dele uma lenda, é a paixão pelo ato de ensinar, que transcendia a matéria. Ele transmitia conhecimento sem nunca esquecer da formação ético-moral. Era a alegria contagiante em pessoa, sempre de braços abertos – o que é um feito para um "carrasco" da literatura.

O depoimento de Selma Medeiros, aluna dele no Curso Normal entre 1969-1971, é a prova final, a certidão de imortalidade. Aos 65 anos, ela descobre que o professor, aquele que a obrigava a ler, escrever, montar, dirigir, contracenar e iluminar (tudo isso numa aula de Português, veja bem), era mais que um mestre. Era um amor que ela passou a vida inteira sentindo sem se dar conta.

Albanito Vaz Júnior, na verdade, não morreu em 27 de abril de 2018. Ele apenas encerrou a peça. Mas, como diz Selma, enquanto houver alguém por aí que consiga fazer pelo menos um pouco do que ele ensinou, Albanito é, e será, imortal. Ele vive na ponta do lápis, na linha lida e, principalmente, na saudade que faz o auditório do Instituto de Educação ficar, de novo, cheio.

 

Helena Antipoff: A Dama Russa que Redesenhou a Escola em Minas (por Ronaldo Campos)


Dizem que o destino tem lá suas ironias, e o de Helena Antipoff, uma russa nascida em 1892, na Grodno, na Russia Imperial, que então era czarista, é prova cabal. Filha de um militar de alta patente e de uma aristocrata — imagine-se o frisson nos salões de São Petersburgo —, ela parecia fadada aos luxos e aos salões iluminados. Mas o que a atraía, de fato, era a luz fria do saber.

Com a separação dos pais, a mudança para Paris veio a calhar, trocando o gelo russo pelo efervescente intelectual da Sorbonne e do Collège de France. Formou-se em Psicologia. E, não satisfeita com o diploma, transferiu-se para Genebra, no Instituto Jean Jacques Rousseau, o templo da pedagogia da época.

Em 1916, a Europa ardia nos eventos da Primeira Grande Guerra Mundial, e a jovem Helena Antipoff, movida por laços de sangue, voltou à Rússia ocupada para cuidar do pai ferido. No meio do furacão da Revolução Bolchevique de 1917, ela não vestiu a camisa ideológica revolucionária, mas arregaçou as mangas e ajudou os seus patrícios com uma obstinação sem limites. Trabalhou em Viatka e São Petersburgo, lidando com o que o sistema chamava, com a delicadeza de um trator, a infância desvalida e com os "jovens delinquentes": garotos abandonados, órfãos da guerra ou da revolução, sem teto, sem rumo e sem destino. O futuro era absolutamente incerto, mas a ciência era sua bússola. Em 1921, como colaboradora no Laboratório de Psicologia Experimental de São Petersburgo, atuou no campo social buscando minimizar os efeitos negativos de tantas transformações.

A vida, porém, não lhe deu trégua. Casou-se com Viktor Iretsky, escritor e jornalista que teve a infelicidade de desagradar o regime soviético com suas ideias. Perseguido e preso, o jeito foi buscar o exílio em Berlim. Sem espaço para seu trabalho na Alemanha, Helena retornou à Suíça, onde pôde retomar sua carreira acadêmica de peso, assistindo o renomado Édouard Claparède na Universidade de Genebra e lecionando no Instituto Rousseau. Estava no centro do debate sobre o pensamento inteligente.

É aí que o mapa-múndi resolve pregar-lhe uma peça, ou um aceno do destino. O governo de Minas Gerais, por obra e graça da Providência ou de algum visionário, a convida para lecionar na Escola de Aperfeiçoamento. A princípio, ela recusou, talvez achando que Minas era longe demais de Genebra. Mas, em 1929, assinou o contrato. A Dama Russa aterrissava em Belo Horizonte.

Em Minas, Helena não apenas lecionou Psicologia. Ela recriou um pedaço de Genebra, transformando o Laboratório de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento em um caldeirão de teoria e prática. Seu trabalho ali serviu de base para um programa vastíssimo de pesquisa sobre o desenvolvimento mental das crianças mineiras. Seu objetivo não era dar receitas prontas, mas preparar as futuras professoras para conhecer a criança com olhos científicos e métodos novos.

O legado, contudo, só engatinhava. Em 1932, sob sua presidência, nasceu a Sociedade Pestalozzi de Belo Horizonte. A instituição visava, inicialmente, cuidar das "crianças excepcionais" e assessorar as professoras. Mas o leque de atuação era muito mais amplo: miséria, abandono, deficiência mental. Em resumo, tratava-se de garantir o direito da criança em situação de risco social. O Consultório Médico-Pedagógico, embrião do futuro Instituto Pestalozzi, era a prova de que a filantropia tinha que andar de mãos dadas com a ciência.

O projeto culminou, em 1940, na Escola da Fazenda do Rosário, em Ibirité. Lá, em meio ao ambiente rural, ela aplicou os métodos da Escola Ativa, centrados na autonomia da criança, fossem elas abandonadas ou "excepcionais". Foi nessa fazenda que ela lavrou sua obra mais significativa sobre educação especial, rural, criatividade e superdotação. Sua filosofia era clara: uma atitude democrática, respeito à diversidade e fé na ciência como motor de transformação.

Helena Antipoff, a moça dos salões de São Petersburgo, entendeu que "talento e inteligência não são de geração espontânea". Eles são o resultado de um longo trabalho, de oportunidades. E, como ela mesma perguntou, com a precisão de um cirurgião de almas: "quem será pintor num meio rural, onde a criança nem mesmo tem o direito de usas o lápis de cor?".

A resposta, ela deu em vida e obra: a educação científica e humanizada é o pincel que garante esse direito. E Minas, por sorte, foi o seu vasto e fértil ateliê.


 

sábado, 11 de outubro de 2025

IEMG: O Casulo Grande que criava Borboletas (uma crônica de Ronaldo Campos)


 

Ah, o Instituto de Educação de Minas Gerais! Quem não conhece essa escola, minha gente? Quem nunca ouviu falar da escola de normalistas mais famosa das terras mineiras? O IEMG é muito mais que um prédio feito de tijolo e cal, todo pintado de tons de rosa. O Instituto, a nossa Eterna Escola Normal Modelo, é um coração vivo batendo forte no peito de Minas, um casulo antigo onde tantas gerações de moças, e depois meninos e moças, se fizeram borboletas, prontas para voar por esse mundo vasto.

Lá se foram os anos, mais de um século de história. Desde 1906, durante o governo do grande republicano João Pinheiro, quando nasceu ainda bem pequena com nome de “Escola Normal Modelo” e com sede no casarão da rua Timbiras. Poucas alunas, poucas turmas. Mas um destino grande, tão grande quanto o seu nome. Um nome tão comprido para um sonho tão grande que se fez realidade! O lema, esse sim, a gente guarda na memória: “Educar-se para educar”. Palavra bendita que se fez prática.

No começo, como toda história de gente de respeito, era mais reservado, coisa de moça de família, um mimo para a elite. O esmero na formação das professoras era a joia da coroa. Ali, no soalho daquela escola, se plantava a semente do saber mais bonito, aquele que a gente leva na alma para ensinar os outros. Era a referência, o farol aceso no Estado.

Desta escola, saíram milhares de professoras que com competência e sabedoria educaram muitas gerações. Tornando possível o sonho de garantir a cidadania para aqueles que estavam excluídos. Quando João Pinheiro e Carvalho de Britto idealizaram o projeto de uma grande reforma na instrução pública, eles queriam garantir o direito ao voto para milhares de mineiros. Naquela época, ser alfabetizado era uma exigência para participar da vida cidadã. Logo, com a Escola Normal e os grupos escolares, uma nova geração de mineiros teria a sua vida transformada. E, por sua vez, transformariam a vida do nosso país.

Por isso, é que podemos afirmar que a vida, como um rio, nunca para. Está em constante transformação. E o IEMG (como a própria vida em movimento) cresceu, espichou os braços e abriu as portas, feito mãe que acolhe todos os filhos. Hoje, é um gigante manso na rede estadual. Tem o pequeno, o mocinho do fundamental, o rapaz do médio, do curso técnico que continua a tecer a arte de cuidar do outro e até a educação de quem já tem a vida vivida, buscando a luz do saber. Quer cumprir a promessa de espalhar o ensino para todos os cantos, como manda a Secretaria. E faz bonito, pode acreditar! Os resultados estão aí, nas provas que o governo faz e nas aprovações dos meninos e meninas nas faculdades, sejam elas públicas ou privadas, feito água que encontra o mar.

Não é só de livro e prova que vive essa casa. O Instituto é também ninho de cultura. Já tivemos Coral, revista e até uma rádio! A nossa fanfarra é a joia da coroa. Sempre marcando o passo da alegria! Tudo isso é prova viva da cultura que floresce na escola, perfumando a cidade inteira.

A educação, para o IEMG, sempre foi o pão de cada dia, o tempero da vida. Ali se conversa, se revira o avesso das dificuldades e se festeja o acerto, o sucesso de uma ideia nova. É um quintal onde os saberes de aluno e professor se encontram, viram farinha e fazem bolo.

Essa escola foi e continua sendo um tablado iluminado, um palco de dança onde as reformas, as mudanças, as revoluções do ensino dão seus passos. É lá que se ensina o que é preciso para o aluno se levantar sozinho, ser produtivo no bem e responsável com a vida. Para que cada um seja dono de sua história, sem se prender ao que é batido e sem graça do senso comum. Essa busca por um caminho novo e mais florido, valoriza a gente da comunidade que mora em volta, entendendo a escola como o lugar bendito que ajuda a fazer a nossa sociedade mais junta, mais irmã e de braços dados.

É uma história de sementes, raízes e frutos que não para de nos ensinar. Bendito seja esse Instituto!

A Invenção do Dia de Ser Criança (Contada pela Dona Benta)



Vamos imaginar como Monteiro Lobato teria pensado uma história em que Dona Benta explicaria a criação do dia das crianças


A primavera se aproximava. Pedrinho, lá na casa dos pais, sonhava com as férias no Sítio. Enquanto isso, na varanda do Picapau Amarelo, numa tarde dessas de sol que pinta a paisagem de ouro velho, Narizinho, com um ar mais pensativo que o próprio Visconde quando desvendava mistérios de aranha, soltou a questão:

— Vovó Benta, de onde veio esse negócio de "Dia da Criança"? A gente já não é criança todo dia?

Dona Benta, que estava a bordar uma toalha de mesa para presentear a mãe de Pedrinho, com a paciência dos santos e a sabedoria dos livros, ergueu os óculos até a testa e sorriu. Emília, que surgia agora na varanda, tentava disfarçar a curiosidade, mas não conseguia.

— Ah, minha netinha, essa é uma história das boas! Uma história de gente grande que resolveu enxergar os miúdos.

O Visconde, que se balançava numa teia de aranha (coisa de quem tem miolo de sabugo, mas espírito de inventor e cientista), pigarreou.

— Se me permite, Dona Benta, devo antecipar que contribuirei com dados históricos precisos, extraídos das minhas enciclopédias de pólen.

— Deixe de ser pedante, Visconde! — retrucou Emília, enquanto Tia Nastácia, qual fada madrinha, surgia da cozinha com um travessa fumegante de bolinhos de chuva.

— A Vovó Benta conta melhor! — Sentenciou a boneca de pano e olhos de retros, já de olho na guloseima.

Dona Benta riu com gosto e balançou a cabeça, concordando com a boneca falante.

— Pois bem, meus queridos. Antigamente, muito antigamente mesmo, a infância era vista de um jeito estranho. As crianças eram tratadas como homúnculos.

Emília, claro, interrompeu imediatamente, perguntando o que era essa palavra tão difícil.

O Visconde, com sua sabedoria que parecia não ter fim, recitou o significado, como se o dicionário estivesse ali ao alcance da mão:

— Minha cara Marquesa, a palavra homúnculo vem do latim 'homunculus', que é o diminutivo de 'homo' (homem). Literalmente, significa 'homenzinho'. O termo foi adotado para designar a criança como um "mini-adulto", uma representação miniaturizada do ser humano, sem valorizar sua própria essência.

Dona Benta continuou:

— Exato! As crianças eram vistas e tratadas como "mini-adultos", como pequenos trabalhadores, pequenos súditos. Quase ninguém parava para pensar que a infância é um tempo especial, um reino de invenção e descoberta. A gente podia ser criança, claro, mas sem muito alarde.

Narizinho arregalou os olhos, pensando nas caixas da Estrela. — Quer dizer que ninguém ganhava brinquedo? Nem bolinho de chuva?

— Bolinho de chuva tem que ter todo dia! — Emília interveio com autoridade, roubando um bolinho antes que o Visconde pudesse argumentar.

— Quase isso, minha flor. Mas o mundo foi girando, e gente muito esperta começou a perceber que criança não é só um adulto que ainda não cresceu. Criança é criança, com seus próprios direitos, suas próprias fantasias e uma necessidade enorme de ser protegida e amada.

Emília sentou-se ainda mais perto de Dona Benta e, com a voz ligeiramente abafada pelos bolinhos, perguntou:

— E quem foi que teve a ideia de dar um dia só pra gente?

— Ora, dona Marquesa! — Dona Benta continuou, com um brilho no olhar. — Essa história tem um tanto de Brasil e um tanto de mundo. Lá para os lados de Genebra, na Suíça, depois de uma guerra muito feia, em 1924, criaram a "Declaração dos Direitos da Criança". Foi o primeiro passo para o mundo inteiro olhar com mais carinho. E depois, a ONU, aquela Organização das Nações Unidas, lá em 1959, fez uma Declaração de verdade para que todas as crianças tivessem seus direitos garantidos. Em resumo, meus queridos, no início do século XX, existia uma preocupação muito grande com a proteção dos menores, principalmente, das crianças desvalidas e pobres. Muitas eram obrigadas a trabalhar muitas horas seguidas e outras eram encarceradas por delitos. Lembra daquele livro que lemos onde o personagem Oliver Twist, um pobre órfão que passa por uma série de provações e busca sobreviver na crueldade das ruas de Londres.

 — Ah, mas a senhora está se esquecendo do mais importante, Vovó! — interveio Emília, sacudindo o pires. — E a parte daquele mineiro famoso... o Arthur Bernardes!

Dona Benta sorriu. — Muito bem lembrado, Emília! Aqui no Brasil, um homem chamado Arthur Bernardes, que era presidente do Brasil, instituiu a "Festa da Criança" em 12 de outrubro de 1924. Mas, essa comemoração não ficou muito popular de imediato. demorou um pouco para as coisas acontecerem!

Narizinho bateu palmas. — Então, foi um presidente do Brasil que inventou o nosso dia! Que chique! E ainda bem que hoje a Estrela e as outras fábricas existem para nos dar os brinquedos, Vovó!

Visconde, com toda a sua eloquência de um sabugo sabido, tomou a palavra e continuou a explicação de onde a dona Benta havia parado.

  Meus caros, a popularidade do dia da criança só se tornou uma realidade palpável na década de 1950, impulsionada por muitas campanhas publicitárias das empresas Estrela e Jonhson & Jonhson, que transformaram esse dia em evento comercial de presentes e brinquedos.

— E olha que interessante — Dona Benta concluiu, com um ar de quem revela um segredo. — O mundo inteiro, depois, também criou o seu Dia Universal da Criança, lá em 20 de novembro. Mas aqui, no Brasil, a gente já tinha o nosso antes! E por que o 12 de outubro, justo no feriado de Nossa Senhora Aparecida? Ninguém sabe ao certo, mas deve ser para que a gente nunca se esqueça de que o Dia da Criança também é um dia de luz, de proteção e de muito carinho.

Emília, com um sorriso matreiro, olhou para sua dona. — Então, Narizinho, já que a gente já é criança todo dia, o dia 12 de outubro é para a gente lembrar aos adultos que o nosso reino de invenção e descoberta precisa ser respeitado. E também, claro, para ganhar mais bolinhos de chuva!

Narizinho assentiu, com a boca cheia. — E presentes! Não se esqueça dos presentes, Emília! Criança precisa de presentes e de histórias bem contadas, como as da Vovó Benta.

E assim, entre bolinhos, risadas e a promessa de um presente da Estrela, a varanda do Sítio parecia o próprio 12 de outubro, lembrando a todos que a melhor forma de celebrar o Dia da Criança é, simplesmente, deixando-a ser a dona de seu próprio reino de fantasia.


A Lição Inesperada (e Desidratada) do Candeal


 

 

A minha iniciação na rede estadual de ensino, após anos na bem-comportada escola particular e a custosa obtenção do meu MASP, deu-se pela intuição — um recurso que jamais constou em qualquer ementa de faculdade.

Aos vinte e poucos, eu ostentava uma face que beirava os dezessete. Quando o Diretor me recebeu na minha primeira escola da rede particular de ensino, tive a certeza melancólica de que ele ponderava: “Quem contratou este menino? É mais novo que o quinto ano.”

Naquele primeiro contato, ele fez questão de me munir de um fardamento moral: roupas sociais, nada de intimidade com os alunos e, acima de tudo, impor respeito. Mais tarde, quando a realidade de uma sala "agitada" se impôs, ele me entregou uma "carta branca" de terra arrasada: expulsão imediata para os perturbadores, suspensão de três dias na terceira falta e, por fim, a expulsão definitiva para os reincidentes. Uma política pedagógica que soava mais a toque de caixa do que a filosofia educacional. Pensei, com a devida gravidade do meu recém adquirido cargo, que aquilo daria muito, mas muito errado.

Eu só viria a debutar como professor efetivo, na rede estadual, quase cinco anos depois de formado. Minhas primeiras turmas, no turno da tarde, eram de alunos do quinto ano com anos de repetência. Jovens e crianças que já traziam a baixa autoestima como parte do material didático.

Felizmente, eu tinha algumas vantagens naturais. Uma dicção que, vira e mexe, me rendia o infortúnio de ser confundido com locutor. Uma presença cênica razoável e, o mais importante, a fama de ser um sujeito deveras sério – para não dizer bravo e rigoroso – o que, suspeito, compensava a aparência juvenil. Fora isso, eu preparava minhas aulas com a devoção de um monge, vivendo recluso na Biblioteca Luiz de Bessa, da Praça da Liberdade. Se não dominava o campo de batalha, dominava, ao menos, o conteúdo.

Foi nesse cenário de alta voltagem e baixas expectativas que aprendi as minhas primeiras lições. todas foram muito uteis para os anos seguintes. Por exemplo, a certeza de que ninguém ganha nada no grito foi comprovada em uma aula realizada numa tarde de verão de 1997. A sala de aula era um forno. Não havia ventilação de teto, quanto mais o luxo climatizado. A única troca de ar se dava por estreitos basculantes posicionados tão perto do teto que pareciam ter vergonha de ventilar.

Entrei às 13 horas, dei o meu "bom dia" de professor e comecei a me apresentar, num tom cerimonioso. Foi quando o palco se abriu: um aluno, lá do fundo, não levantou a mão – ele gritou, com a urgência de quem anuncia uma catástrofe iminente:

— Eu estou com sede!

A resposta não tardou. A turma inteira, em uníssono de tambor produzido com batidas frenéticas nas mesas, com palmas e pés batendo no chão, bradou o refrão que se tornara o hino extraoficial do verão baiano daquele ano:

— Tá com sede! Olha a água mineral, água mineral, água mineral do Candeal, você vai ficar legal!

A sala virou a Praça Castro Alves em plena segunda feira de carnaval. Fechei a porta, calmamente, para que a agitação ficasse confinada. A temperatura subiu, talvez pela algazarra, talvez pela ironia do timing musical. Enquanto a canção se repetia, eu simplesmente levantei o braço e esperei. Não gritei, não descabei, não bati palmas, não fiz a menor tentativa de competir em volume. Fiquei ali, como um busto de mármore à espera da devida veneração.

O espanto dos alunos com minha inação deve ter sido genuíno. Por um instante mágico, o coro desafinado silenciou. Um dos rapazes me explicou, com a voz agora quase civilizada, que o calor estava insuportável, que se sentia mal.

Concordei com a serenidade de um filósofo que acaba de descobrir a roda: sentia o mesmo. Mas avisei, em tom normal, sem queimar um único decibel das minhas cordas vocais: se a festa continuasse, era aquilo que teríamos. Todos — e eu me incluía no desastre — passariam mal naquele ambiente.

A ficha caiu. Naquele universo de periferia, onde o normal é o grito como imposição e o desrespeito é moeda corrente, o silêncio educado se revelava a mais violenta das armas. Minha fé pública, meu ofício, minha persona grave, tudo se alinhou.

A grande lição da tarde, aprendida sem precisar expulsar ninguém (o que era, confesso, um alívio burocrático), foi a seguinte: não se combate a desordem com mais desordem. Para ser respeitado, sobretudo por quem só conhece o mundo do berro, era preciso ser a antítese.

E, afinal, quem precisa de água mineral do Candeal para "ficar legal", quando se pode alcançar a sanidade e o respeito alheio simplesmente optando por não gritar?

Um gole de água mineral me faria bem, é claro. Mas a autoridade, descobri, vinha em doses controladas de silêncio. Ficar "legal" era o de menos; o difícil mesmo era fazê-los calar legalmente. E isso, meu caro, não estava à venda em garrafinha PET. Nem mesmo a R$ 2,00.