A minha iniciação na rede estadual de ensino, após anos
na bem-comportada escola particular e a custosa obtenção do meu MASP, deu-se
pela intuição — um recurso que jamais constou em qualquer ementa de faculdade.
Aos vinte e poucos, eu ostentava uma face que beirava os dezessete. Quando o Diretor me recebeu na minha primeira escola da rede particular de ensino, tive a certeza melancólica de que ele ponderava: “Quem contratou este menino? É mais novo que o quinto ano.”
Naquele primeiro contato, ele fez questão de me munir de
um fardamento moral: roupas sociais, nada de intimidade com os alunos e, acima
de tudo, impor respeito. Mais tarde, quando a realidade de uma sala
"agitada" se impôs, ele me entregou uma "carta branca" de
terra arrasada: expulsão imediata para os perturbadores, suspensão de três dias
na terceira falta e, por fim, a expulsão definitiva para os reincidentes. Uma
política pedagógica que soava mais a toque de caixa do que a filosofia
educacional. Pensei, com a devida gravidade do meu recém adquirido cargo, que
aquilo daria muito, mas muito errado.
Eu só viria a debutar como professor efetivo, na rede
estadual, quase cinco anos depois de formado. Minhas primeiras turmas, no turno
da tarde, eram de alunos do quinto ano com anos de repetência. Jovens e
crianças que já traziam a baixa autoestima como parte do material didático.
Felizmente, eu tinha algumas vantagens naturais. Uma
dicção que, vira e mexe, me rendia o infortúnio de ser confundido com locutor.
Uma presença cênica razoável e, o mais importante, a fama de ser um sujeito
deveras sério – para não dizer bravo e rigoroso – o que,
suspeito, compensava a aparência juvenil. Fora isso, eu preparava minhas aulas
com a devoção de um monge, vivendo recluso na Biblioteca Luiz de Bessa, da
Praça da Liberdade. Se não dominava o campo de batalha, dominava, ao menos, o
conteúdo.
Foi nesse cenário de alta voltagem e baixas expectativas
que aprendi as minhas primeiras lições. todas foram muito uteis para os anos seguintes. Por exemplo, a certeza de que ninguém ganha nada no grito foi comprovada em uma aula realizada numa tarde de verão de 1997. A sala de
aula era um forno. Não havia ventilação de teto, quanto mais o luxo
climatizado. A única troca de ar se dava por estreitos basculantes posicionados
tão perto do teto que pareciam ter vergonha de ventilar.
Entrei às 13 horas, dei o meu "bom dia" de
professor e comecei a me apresentar, num tom cerimonioso. Foi quando o palco se
abriu: um aluno, lá do fundo, não levantou a mão – ele gritou, com a
urgência de quem anuncia uma catástrofe iminente:
— Eu estou com sede!
A resposta não tardou. A turma inteira, em uníssono de
tambor produzido com batidas frenéticas nas mesas, com palmas e pés batendo no chão, bradou o refrão que se tornara o hino extraoficial do verão baiano daquele ano:
— Tá com sede! Olha a água mineral, água mineral, água
mineral do Candeal, você vai ficar legal!
A sala virou a Praça Castro Alves em plena segunda feira de carnaval. Fechei a porta,
calmamente, para que a agitação ficasse confinada. A temperatura subiu, talvez
pela algazarra, talvez pela ironia do timing musical. Enquanto a canção
se repetia, eu simplesmente levantei o braço e esperei. Não gritei, não descabei, não bati
palmas, não fiz a menor tentativa de competir em volume. Fiquei ali, como um
busto de mármore à espera da devida veneração.
O espanto dos alunos com minha inação deve ter sido
genuíno. Por um instante mágico, o coro desafinado silenciou. Um dos rapazes me
explicou, com a voz agora quase civilizada, que o calor estava insuportável,
que se sentia mal.
Concordei com a serenidade de um filósofo que acaba de
descobrir a roda: sentia o mesmo. Mas avisei, em tom normal, sem queimar um
único decibel das minhas cordas vocais: se a festa continuasse, era aquilo que
teríamos. Todos — e eu me incluía no desastre — passariam mal naquele ambiente.
A ficha caiu. Naquele universo de periferia, onde o
normal é o grito como imposição e o desrespeito é moeda corrente, o silêncio
educado se revelava a mais violenta das armas. Minha fé pública, meu ofício,
minha persona grave, tudo se alinhou.
A grande lição da tarde, aprendida sem precisar expulsar
ninguém (o que era, confesso, um alívio burocrático), foi a seguinte: não se
combate a desordem com mais desordem. Para ser respeitado, sobretudo por quem
só conhece o mundo do berro, era preciso ser a antítese.
E, afinal, quem precisa de água mineral do Candeal para
"ficar legal", quando se pode alcançar a sanidade e o respeito alheio
simplesmente optando por não gritar?
Um gole de água mineral me faria bem, é claro. Mas a autoridade,
descobri, vinha em doses controladas de silêncio. Ficar "legal" era o
de menos; o difícil mesmo era fazê-los calar legalmente. E isso, meu
caro, não estava à venda em garrafinha PET. Nem mesmo a R$ 2,00.
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