sábado, 11 de outubro de 2025

A Lição Inesperada (e Desidratada) do Candeal


 

 

A minha iniciação na rede estadual de ensino, após anos na bem-comportada escola particular e a custosa obtenção do meu MASP, deu-se pela intuição — um recurso que jamais constou em qualquer ementa de faculdade.

Aos vinte e poucos, eu ostentava uma face que beirava os dezessete. Quando o Diretor me recebeu na minha primeira escola da rede particular de ensino, tive a certeza melancólica de que ele ponderava: “Quem contratou este menino? É mais novo que o quinto ano.”

Naquele primeiro contato, ele fez questão de me munir de um fardamento moral: roupas sociais, nada de intimidade com os alunos e, acima de tudo, impor respeito. Mais tarde, quando a realidade de uma sala "agitada" se impôs, ele me entregou uma "carta branca" de terra arrasada: expulsão imediata para os perturbadores, suspensão de três dias na terceira falta e, por fim, a expulsão definitiva para os reincidentes. Uma política pedagógica que soava mais a toque de caixa do que a filosofia educacional. Pensei, com a devida gravidade do meu recém adquirido cargo, que aquilo daria muito, mas muito errado.

Eu só viria a debutar como professor efetivo, na rede estadual, quase cinco anos depois de formado. Minhas primeiras turmas, no turno da tarde, eram de alunos do quinto ano com anos de repetência. Jovens e crianças que já traziam a baixa autoestima como parte do material didático.

Felizmente, eu tinha algumas vantagens naturais. Uma dicção que, vira e mexe, me rendia o infortúnio de ser confundido com locutor. Uma presença cênica razoável e, o mais importante, a fama de ser um sujeito deveras sério – para não dizer bravo e rigoroso – o que, suspeito, compensava a aparência juvenil. Fora isso, eu preparava minhas aulas com a devoção de um monge, vivendo recluso na Biblioteca Luiz de Bessa, da Praça da Liberdade. Se não dominava o campo de batalha, dominava, ao menos, o conteúdo.

Foi nesse cenário de alta voltagem e baixas expectativas que aprendi as minhas primeiras lições. todas foram muito uteis para os anos seguintes. Por exemplo, a certeza de que ninguém ganha nada no grito foi comprovada em uma aula realizada numa tarde de verão de 1997. A sala de aula era um forno. Não havia ventilação de teto, quanto mais o luxo climatizado. A única troca de ar se dava por estreitos basculantes posicionados tão perto do teto que pareciam ter vergonha de ventilar.

Entrei às 13 horas, dei o meu "bom dia" de professor e comecei a me apresentar, num tom cerimonioso. Foi quando o palco se abriu: um aluno, lá do fundo, não levantou a mão – ele gritou, com a urgência de quem anuncia uma catástrofe iminente:

— Eu estou com sede!

A resposta não tardou. A turma inteira, em uníssono de tambor produzido com batidas frenéticas nas mesas, com palmas e pés batendo no chão, bradou o refrão que se tornara o hino extraoficial do verão baiano daquele ano:

— Tá com sede! Olha a água mineral, água mineral, água mineral do Candeal, você vai ficar legal!

A sala virou a Praça Castro Alves em plena segunda feira de carnaval. Fechei a porta, calmamente, para que a agitação ficasse confinada. A temperatura subiu, talvez pela algazarra, talvez pela ironia do timing musical. Enquanto a canção se repetia, eu simplesmente levantei o braço e esperei. Não gritei, não descabei, não bati palmas, não fiz a menor tentativa de competir em volume. Fiquei ali, como um busto de mármore à espera da devida veneração.

O espanto dos alunos com minha inação deve ter sido genuíno. Por um instante mágico, o coro desafinado silenciou. Um dos rapazes me explicou, com a voz agora quase civilizada, que o calor estava insuportável, que se sentia mal.

Concordei com a serenidade de um filósofo que acaba de descobrir a roda: sentia o mesmo. Mas avisei, em tom normal, sem queimar um único decibel das minhas cordas vocais: se a festa continuasse, era aquilo que teríamos. Todos — e eu me incluía no desastre — passariam mal naquele ambiente.

A ficha caiu. Naquele universo de periferia, onde o normal é o grito como imposição e o desrespeito é moeda corrente, o silêncio educado se revelava a mais violenta das armas. Minha fé pública, meu ofício, minha persona grave, tudo se alinhou.

A grande lição da tarde, aprendida sem precisar expulsar ninguém (o que era, confesso, um alívio burocrático), foi a seguinte: não se combate a desordem com mais desordem. Para ser respeitado, sobretudo por quem só conhece o mundo do berro, era preciso ser a antítese.

E, afinal, quem precisa de água mineral do Candeal para "ficar legal", quando se pode alcançar a sanidade e o respeito alheio simplesmente optando por não gritar?

Um gole de água mineral me faria bem, é claro. Mas a autoridade, descobri, vinha em doses controladas de silêncio. Ficar "legal" era o de menos; o difícil mesmo era fazê-los calar legalmente. E isso, meu caro, não estava à venda em garrafinha PET. Nem mesmo a R$ 2,00.



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