Vamos imaginar como Monteiro Lobato teria pensado uma história em que Dona Benta explicaria a criação do dia das crianças
A primavera se aproximava.
Pedrinho, lá na casa dos pais, sonhava com as férias no Sítio. Enquanto isso,
na varanda do Picapau Amarelo, numa tarde dessas de sol que pinta a paisagem de
ouro velho, Narizinho, com um ar mais pensativo que o próprio Visconde quando
desvendava mistérios de aranha, soltou a questão:
— Vovó Benta, de onde veio
esse negócio de "Dia da Criança"? A gente já não é criança todo dia?
Dona Benta, que estava a
bordar uma toalha de mesa para presentear a mãe de Pedrinho, com a paciência
dos santos e a sabedoria dos livros, ergueu os óculos até a testa e sorriu.
Emília, que surgia agora na varanda, tentava disfarçar a curiosidade,
mas não conseguia.
— Ah, minha netinha, essa é
uma história das boas! Uma história de gente grande que resolveu enxergar os
miúdos.
O Visconde, que se balançava
numa teia de aranha (coisa de quem tem miolo de sabugo, mas espírito de
inventor e cientista), pigarreou.
— Se me permite, Dona Benta,
devo antecipar que contribuirei com dados históricos precisos, extraídos das
minhas enciclopédias de pólen.
— Deixe de ser pedante,
Visconde! — retrucou Emília, enquanto Tia Nastácia, qual fada madrinha, surgia
da cozinha com um travessa fumegante de bolinhos de chuva.
— A Vovó Benta conta melhor! —
Sentenciou a boneca de pano e olhos de retros, já de olho na guloseima.
Dona Benta riu com gosto e
balançou a cabeça, concordando com a boneca falante.
— Pois bem, meus queridos.
Antigamente, muito antigamente mesmo, a infância era vista de um jeito
estranho. As crianças eram tratadas como homúnculos.
Emília, claro, interrompeu
imediatamente, perguntando o que era essa palavra tão difícil.
O Visconde, com sua sabedoria
que parecia não ter fim, recitou o significado, como se o dicionário estivesse
ali ao alcance da mão:
— Minha cara Marquesa, a
palavra homúnculo vem do latim 'homunculus', que é o diminutivo de 'homo'
(homem). Literalmente, significa 'homenzinho'. O termo foi adotado para
designar a criança como um "mini-adulto", uma representação
miniaturizada do ser humano, sem valorizar sua própria essência.
Dona Benta continuou:
— Exato! As crianças eram
vistas e tratadas como "mini-adultos", como pequenos trabalhadores,
pequenos súditos. Quase ninguém parava para pensar que a infância é um tempo
especial, um reino de invenção e descoberta. A gente podia ser criança, claro,
mas sem muito alarde.
Narizinho arregalou os olhos,
pensando nas caixas da Estrela. — Quer dizer que ninguém ganhava brinquedo? Nem
bolinho de chuva?
— Bolinho de chuva tem que ter
todo dia! — Emília interveio com autoridade, roubando um bolinho antes que o
Visconde pudesse argumentar.
— Quase isso, minha flor. Mas
o mundo foi girando, e gente muito esperta começou a perceber que criança não é
só um adulto que ainda não cresceu. Criança é criança, com seus próprios
direitos, suas próprias fantasias e uma necessidade enorme de ser protegida e
amada.
Emília sentou-se ainda mais
perto de Dona Benta e, com a voz ligeiramente abafada pelos bolinhos,
perguntou:
— E quem foi que teve a ideia
de dar um dia só pra gente?
— Ora, dona Marquesa! — Dona Benta continuou, com um brilho no olhar. — Essa história tem um tanto de Brasil e um tanto de mundo. Lá para os lados de Genebra, na Suíça, depois de uma guerra muito feia, em 1924, criaram a "Declaração dos Direitos da Criança". Foi o primeiro passo para o mundo inteiro olhar com mais carinho. E depois, a ONU, aquela Organização das Nações Unidas, lá em 1959, fez uma Declaração de verdade para que todas as crianças tivessem seus direitos garantidos. Em resumo, meus queridos, no início do século XX, existia uma preocupação muito grande com a proteção dos menores, principalmente, das crianças desvalidas e pobres. Muitas eram obrigadas a trabalhar muitas horas seguidas e outras eram encarceradas por delitos. Lembra daquele livro que lemos onde o personagem Oliver Twist, um pobre órfão que passa por uma série de provações e busca sobreviver na crueldade das ruas de Londres.
— Ah, mas a senhora está se esquecendo do mais importante, Vovó! — interveio Emília, sacudindo o pires. — E a parte daquele mineiro famoso... o Arthur Bernardes!
Dona Benta sorriu. — Muito bem
lembrado, Emília! Aqui no Brasil, um homem chamado Arthur Bernardes, que era
presidente do Brasil, instituiu a "Festa da Criança" em 12 de outrubro de 1924. Mas, essa comemoração não ficou muito popular de imediato. demorou um pouco para as coisas acontecerem!
Narizinho bateu palmas. —
Então, foi um presidente do Brasil que inventou o nosso dia! Que chique! E
ainda bem que hoje a Estrela e as outras fábricas existem para nos dar os
brinquedos, Vovó!
Visconde, com toda a sua eloquência de um sabugo sabido, tomou a palavra e continuou a explicação de onde a dona Benta havia parado.
— Meus caros, a popularidade do dia da criança só se tornou uma realidade palpável na década de 1950, impulsionada por muitas campanhas publicitárias das empresas Estrela e Jonhson & Jonhson, que transformaram esse dia em evento comercial de presentes e brinquedos.
— E olha que interessante —
Dona Benta concluiu, com um ar de quem revela um segredo. — O mundo inteiro,
depois, também criou o seu Dia Universal da Criança, lá em 20 de novembro. Mas
aqui, no Brasil, a gente já tinha o nosso antes! E por que o 12 de outubro,
justo no feriado de Nossa Senhora Aparecida? Ninguém sabe ao certo, mas deve
ser para que a gente nunca se esqueça de que o Dia da Criança também é um dia
de luz, de proteção e de muito carinho.
Emília, com um sorriso
matreiro, olhou para sua dona. — Então, Narizinho, já que a gente já é criança
todo dia, o dia 12 de outubro é para a gente lembrar aos adultos que o nosso
reino de invenção e descoberta precisa ser respeitado. E também, claro, para
ganhar mais bolinhos de chuva!
Narizinho assentiu, com a boca
cheia. — E presentes! Não se esqueça dos presentes, Emília! Criança precisa de
presentes e de histórias bem contadas, como as da Vovó Benta.
E assim, entre bolinhos,
risadas e a promessa de um presente da Estrela, a varanda do Sítio parecia o
próprio 12 de outubro, lembrando a todos que a melhor forma de celebrar o Dia
da Criança é, simplesmente, deixando-a ser a dona de seu próprio reino de fantasia.
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