Ao folhear as páginas da história da educação em Minas
Gerais, um leitor desavisado poderia jurar que o ano de 1906 marcou o "big
bang" das escolas por aqui. Afinal, as primeiras "instituições"
(ainda sem nome, numeradas como "Primeiro Grupo Escolar",
"Segundo Grupo", e por aí vai, antes de ganharem batismos mais
solenes como "Barão do Rio Branco", “Afonso Pena”, “Olegário Maciel”,
etc) e a gloriosa Escola Normal Modelo (hoje Instituto de Educação) surgiram no
início do século XX. Mas, como em toda boa trama mineira, a história é bem mais
intrincada, e suas raízes mergulham fundo no passado colonial.
Esqueça a linearidade, a progressão suave. O caminho da
educação em Minas é um mapa salpicado de recomeços e rupturas, uma paisagem
acidentada como as próprias serras do estado.
Primórdios ou Quando Minas Ignorava a Cartilha Europeia
No século XVIII europeu, a escola já era vista como um
investimento social de peso, o berço de um novo ethos, de condutas
civilizadas, saberes escolares e até de um patriotismo recém-cunhado. Enquanto
isso, na Capitania de Minas, a realidade era outra. Até meados do século XVIII,
o cenário educacional era um verdadeiro deserto. Mas por que tamanha aridez?
A colonização tardia, movida pela febre do ouro no final
do século XVII, explica parte do mistério. A Coroa portuguesa, com sua política
de "olho vivo", proibiu a instalação de ordens religiosas na
capitania, o que, de quebra, engavetou a ação pedagógica dos jesuítas, exímios
construtores de colégios. Some-se a isso o número ínfimo de mulheres no início
do ciclo da mineração – o que significa poucas famílias estabelecidas – e a
própria natureza da população, mais interessada no brilho fácil do ouro do que
nos valores da cultura letrada ou na educação dos filhos. Uma gente, digamos, "rude
e desprovida de interesse pedagógico".
Das Escolas Domésticas ao Seminário de Mariana
A ausência de escolas institucionalizadas, porém, não
significou um vácuo educacional total. As chamadas "escolas
domésticas" cumpriam seu papel, com mães alfabetizadoras e
"tios-padres" encarregados das primeiras letras. A elite, claro,
seguia o roteiro: depois das noções básicas, o caminho era o Rio de Janeiro ou
a Bahia, para os educandários jesuítas, e, para os mais afortunados, Coimbra,
onde aterrissavam como padres ou doutores.
O jogo começou a virar a partir de 1750, um marco: a
fundação do Seminário de Mariana. Por muito tempo, foi o único farol
educacional para a juventude mineira, destinado a formar clérigos e preparar
jovens para Coimbra. No fim do século XVIII, surgiram outras iniciativas, mais
modestas, como o Colégio do Semidouro (para meninos), o Recolhimento de Nossa
Senhora da Conceição de Macaúbas e o Recolhimento São João da Chapada (ambos
para moças). E, em 1835, a serra do Caraça viu nascer o famoso colégio dos padres
lazaristas, que mais tarde daria origem a uma escola apostólica e um seminário.
Pombal, Jesuítas e Aulas Avulsas: A Saga de um Ensino
Disperso
As reformas pombalinas (1759-1772) trouxeram consigo a
fatídica expulsão dos jesuítas, um golpe duro para a educação em outras partes
do Brasil onde eles comandavam centros escolares. Em Minas, a repercussão foi
menor, já que os jesuítas não haviam fincado raízes educacionais por aqui.
Seminários e colégios de outras ordens (Oratorianos, Franciscanos e Carmelitas)
seguiram existindo.
O Marquês de Pombal, porém, também idealizou as
"aulas régias ou avulsas" de Latim, Grego, Filosofia e Retórica. Eram
cursos isolados, sem articulação entre si, ministrados por um único professor.
Quase trinta anos depois, o Estado português criou o cargo de Diretor Geral dos
Estudos para fiscalizar e nomear professores na colônia, mas a medida não
decolou. A educação patinou. Em 1772, veio o "subsídio literário",
para bancar o ensino primário e secundário. No entanto, o ensino brasileiro
continuou disperso, fragmentado, dependendo de professores leigos e, muitas
vezes, despreparados.
O Século XIX: Cidadania na Sala de Aula e a Lei 13
Apesar de todos os percalços, o século XIX trouxe uma
virada: a escola passou a ser vista como a grande formadora de cidadãos e de
comportamentos coletivos. Essas novas expectativas ecoaram no Brasil, gerando
um debate e uma enxurrada de leis para normatizar o sistema educacional e
definir políticas públicas.
Em Minas Gerais, a primeira legislação da instrução
primária, a Lei número 13 de 28 de março de 1835, estruturou a organização do
ensino elementar, instituiu a obrigatoriedade da frequência às aulas e lançou
as bases para a formação de professores. A primeira escola normal de Minas, em
Ouro Preto, em 1840, teve uma vida intermitente, abrindo e fechando as portas
até se firmar definitivamente em 1872.
No Império, a política educacional era, para usar um
eufemismo, "descontínua". Faltava um sistema que unificasse as
práticas docentes e que investisse de forma sistematizada na instrução pública.
O ensino era um mosaico de salas de aula esparsas, sem um fio condutor.
O Grupo Escolar: Uma Revolução Pedagógica do Campo à
Cidade
A historiadora Lage nos revela que os primeiros grupos
escolares no Brasil, inspirados em modelos europeus e americanos de educação
popular, nasceram em São Paulo no final do século XIX. A proposta era radical:
reunir escolas isoladas em um "agrupamento", transformando o cenário
educacional nacional.
Segundo Saviani (2004), o Grupo Escolar foi um fenômeno tipicamente
urbano, enquanto o campo ainda teimava em manter suas escolas isoladas. Eram,
sobretudo, eficientes na seleção e formação de elites, com a educação para as
massas populares ganhando fôlego apenas com a reforma paulista de 1920.
Esses grupos escolares, também conhecidos como
"escolas graduadas", revolucionaram a pedagogia:
- Classificação dos
alunos: Por nível de conhecimento, em turmas supostamente homogêneas (as
"classes").
- Ensino simultâneo:
Conteúdos organizados e distribuídos de forma racional, com horários
definidos.
- Sistema de avaliação:
Introduzido para medir o progresso.
- Divisão do trabalho
docente: Cada sala, uma série, um professor.
- Edifício escolar: Um
conceito novo, com várias salas de aula.
O ensino primário durava quatro anos, com um currículo enciclopédico
que buscava a formação integral: física, intelectual e moral. Utilizava o
método intuitivo, com materiais didáticos, laboratórios e museus. Exigia
disciplina férrea: assiduidade, asseio, ordem, obediência. E o tempo escolar
era rigidamente controlado por calendários. Práticas "ritualizadas" e
"simbólicas" como exames, exposições e festas cívicas marcavam o ano
letivo.
Mais do que instruir, o grupo escolar tinha um projeto
cultural para a nação, educando o caráter através da disciplina social –
obediência, asseio, pontualidade, amor ao trabalho, honestidade e respeito às
autoridades. Valores essenciais para forjar o espírito de nacionalidade.
O sucesso foi tamanho que o modelo se espalhou pelo
Brasil como um rastilho de pólvora: Rio de Janeiro (1897), Pará (1899), Paraná
(1903), Minas Gerais (1906), Rio Grande do Norte e Espírito Santo (1908), Mato
Grosso (1910), Santa Catarina e Sergipe (1911), Paraíba (1916), Piauí (1920),
entre outros. Minas Gerais, nesse grande mapa da educação nacional, foi uma das
primeiras a aderir, plantando as sementes do que se tornaria seu robusto
sistema educacional. E assim, a história da educação mineira, complexa e cheia
de curvas, continua a ser escrita.
Para os interessados, algumas indicações de leitura que
nortearam o texto:
SAVIANI, Dermeval. O legado educacional do “longo século XX” brasileiro.
In: SAVIANI, Dermeval (et. al.). O legado educacional do século XX no
Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2004
SOUZA, Rosa Fátima de. Lições da escola primária. In: SAVIANI, Dermeval ( et. al.). O legado educacional do século XX no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2004
____________________. Templos de civilização. A implantação da escola
primária graduada no Estado de São Paulo ( 1890-1910). São
Paulo: UNESP, 1998.
VIDAL, Diana Gonçalves (org.). Grupos escolares. Cultura escolar
primária e escolarização da infância no Brasil ( 1893-1971). Campinas,
SP: Mercado das Letras, 2006
VIDAL, Diana Gonçalves. Culturas escolares. Estudo sobre práticas de
leitura e escrita na escola pública primária ( Brasil e França, no final do
século XIX). Campinas, SP: Autores Associados, 2005
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