domingo, 28 de setembro de 2025

O Mestre e a Sombra Austera


 Pedro Nava dedicou várias páginas de Beira Mar para nos apresentar o grande Aurélio Pires, um dos fundadores da Escola de Medicina da UFMG e o primeiro diretor da Escola Normal Modelo, hoje Instituto de Educação de Minas Gerais. Se pegássemos a descrição feita por Nava para elaborar um pequeno conto que serviria para apresentar as jovens gerações quem foi esse grande mineiro, o texto poderia ficar assim:




O Mestre e a Sombra Austera

A primeira impressão de Aurélio Pires era um soco na moleza da alma. Não que ele fosse rude — pelo contrário. Era o extremo oposto: alto, elegantíssimo, de um aprumo impecável que parecia engomar até a gravidade do ar à sua volta. A austeridade que lhe marcava o semblante era de uma beleza quase religiosa, uma candura severa que prometia mais sermão do que abraço.

Seu rosto era um tratado de contraste. O cenho, negro e cerrado, parecia sempre em meditação profunda, em conflito direto com o algodão alvíssimo das barbas brancas. A boca firme, o nariz nobre dos Pires... tudo nele compunha a figura de um santo, mais precisamente o Santo Agostinho de El Greco, saído de um quadro para caminhar pelas ruas do Rio.

E como ele caminhava! O andar era pausado, o gesto medido. Aproximar-se dele era um pequeno rito, uma cerimônia que exigia silêncio, quase reverência. Ele tinha ares de um frade espanhol, um Freire de Santiago perdido no trópico. A gente jurava que, debaixo daquele paletó bem cortado, ele guardava um segredo imenso, talvez a fórmula do tempo.

E guardava mesmo. O segredo, porém, não era um dogma, mas um incêndio.

Por trás daquela reserva que a gente tomava por frieza, e que era apenas uma boa e velha educação, morava um conversador infatigável, um sujeito capaz de acender a roda de amigos com uma graça fina, quase inesperada.

Mas o que desarmava de vez era a alma rebelde que ele ocultava. Sob a casca rígida, Pires carregava o sopro de um revolucionário, o ímpeto de um sans-culotte pronto para virar a mesa da história.

No fim, a gente entendia. A pose formal, a expressão grave, a máscara de professor que ele ostentava na sala de aula... tudo era disfarce. O que havia ali era um mestre, no sentido mais puro e raro da palavra. Aurélio Pires era, afinal, um mistério delicioso: um rigor de monge com o coração de um poeta e a energia de um subversivo. Um homem para se admirar de longe e amar de perto.

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