segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Reflexões sobre ética e estética Texto Ronaldo Campos


Reflexões sobre ética e estética


Texto Ronaldo Campos

Este texto não pretende esgotar o tema.  É um exercício que nasceu de uma tentativa de  de associar temas ou conceitos filosóficos da área da Estética e da Ética.  Pensei em lidar com três questões, a saber: primeiro, "a teoria da Ação Subjetiva"; segundo, "o Todo"; terceiro, "a mediação da Subjetiva".  Optei por trabalhar com apenas um dos vértices, o Todo, visto ser este um termo capital para várias teorias estéticas.
Há muito já se tornou lugar comum dizer que a estética é uma disciplina moderna, visto que o seu nascimento enquanto disciplina é datado do século XVIII, entretanto, tal ideia pode induzir a erros se se chegar ao ponto de negar o mundo antigo como fonte de inspiração para o estudo da arte, negando a fecundidade que no campo da estética possuem alguns conceitos ( os quais, originalmente, não se referiam a arte, pelo menos como a concebemos atualmente).  Dentre os muitos casos, pode-se destacar o conceito de todo  proposto por Aristóteles.  Este conceito perpassa diversas noções fundamentais para a filosofia da arte.  Por exemplo, nos diz Ernesto Grassi, “a téchne  abarca um todo que inclui em si uma pluralidade”.(Grassi, p.66)  Tal afirmação pode ser exemplificada logo no início da Metafísica:  “Saber que tal remédio cura este ou aquele doente constitui a experiência (empiria); porém saber o que tem curado todos os doentes cometidos por uma mesma doença, isto é arte (Téchne)” (981a, 7).  Assim, segundo Aristóteles, a téchne tem início quando um grande número de noções dispersas ministradas pela experiência se “transforma” numa só concepção geral que se aplica a todos os casos semelhantes.  Portanto, “a téchne descobre não somente o que é, como também e ao mesmo tempo o motivo  de ser assim.  A téchne adianta não então dois passos:  primeiro, o esboço do geral (teoria, motivação), que unifica a multiplicidade de objetos (explicação); segundo, o experimento, que prova a teoria esboçada, isto é, confirma ou nega. [...] A téchne, enquanto reúne em um esboço geral uma pluralidade diferencial, é conhecimento por meio do logos, que liga e explica.  Este conhecimento forma um todo”.(Grassi, p.67).  Mas afinal de contas como Aristóteles concebe o todo?  

Na Poética, o Estagirita define o todo como “aquilo que tem princípio, meio e fim”, isto é, o todo é composto de partes; entretanto, “o belo ser-vivente ou o que quer que seja que se  componha de partes, não só deve ter essas partes ordenadas, mas também uma grandeza que não seja qualquer.  Porque o belo consiste na grandeza e na ordem, e portanto, um organismo vivente, pequeníssimo, não poderia ser belo (pois a visão é confusa quando se olha por tempo quase imperceptível); e também não seria belo, grandíssimo (porque faltaria a visão de conjunto”).  Observa-se, pois, que a noção de todo proposta por Aristóteles possui uma clara analogia com conceitos da natureza, com a vida, isto é, com a noção de organismo. 

          
Ao definir a vida, o Estagirita tem por ponto de partida realidades muito simples, das quais, obtém uma constatação inicial, que a primeira vista, pode nos parecer paradoxal, a saber: os seres vivos são compostos pelos mesmos elementos que os objetos inanimados.  Sobre este ponto, escreve Pierre Louis, “Aristóteles nada mais fez do que retomar as teorias dos seus antecessores.  Os gregos concebiam a natureza como um ser único que abarca a totalidade dos seres particulares.  Os primeiros físicos postularam a continuidade da vida e da matéria.  Representavam a existência de todos os corpos, vivos ou não, como expressão de uma vida imanente.  A oposição que para nós é banal, entre matéria inerte e seres vivos, não existia para eles em nenhum grau.  Eles não viam distinção de estrutura nem de natureza entre minerais, vegetais e animais.  Pensavam que tanto uns quanto outros eram feitos da mesma matéria”(Louis, p.186). 
            

Certamente, uma da fontes principais de Aristóteles foi a obra de Empedocles.  O filosofo de Agrigento foi o primeiro pensador que buscou resolver a aporia eleata, “tentando salvar, de um lado, o princípio de que nada nasce, nada perece e o ser sempre permanece e, de outro, os fenômenos atestados pela experiência.[...] Nascimento e morte são [...], respectivamente, mistura e dissolução de determinadas substâncias ingênitas e indestrutíveis, substâncias que permanecem eternamente iguais” - “as raízes do mundo”(Reale, 1993, p.133-134).  Seguindo o  mesmo raciocínio, observa-se que no tratado De la Génération et de la Corruption, Aristóteles descreve, de acordo com Pierre Louis, que as combinações possíveis entre os quatro elementos ( o quente, o frio, o seco e o úmido) limitam-se teoricamente a poucos tipos, pois, os contrários não podem combinar entre si; ou seja, é impossível que o quente e o frio ou o seco e o úmido se associarem num mesmo objeto.(Louis, p.186)  Tais composições - como por exemplo, o fogo que resulta da união entre o quente e o seco; ou o ar, união do quente e do úmido; ou a terra, o frio e o seco; ou ainda a água, o frio e o úmido - não resultam simplesmente de uma justaposição de elementos.  “A  combinação que eles produzem não consiste de um simples amontoado de partículas elementares, mas sempre é seguida de uma modificação qualitativa.  Desta modificação, nasce uma nova forma, na qual cada um dos elementos traz uma contribuição, e que apresenta uma coerência real, mesmo se ela é variável”(Louis, 187).
            

A primeira das sínteses se efetua diretamente das partículas elementares - fogo, terra, ar e água.  Estas se misturam e se combinam para gerar os tecidos - segundo Aristóteles, as homeomerias, pois, elas podem ser divididas em partes idênticas ao todo.  Desta forma, todos os tecidos possuem uma natureza  vital; sendo que a estrutura, por exemplo, de cada porção do tecido ósseo (por menor que seja ) é sempre a mesma.  Entretanto, tais partes (as homeomerias) não podem existir isoladamente, para que existam é necessário o seu vínculo ao organismo como um todo.  As  homeomerias se associam para formar o que Aristóteles chamou de anomeomerias, isto é, os órgãos, as viceras, os membros,... Estes não podem se dividir em partes idênticas ao todo.  A unidade dos membros e dos órgão é o ser vivo ele mesmo.(Louis, p.187-188)  “Cada um dos seres vivos possuem uma individualidade que o distingue do resto da espécie.  Todo indivíduo vivo possui um corpo que é único e que forma um todo”, deste modo, “o ser vivo possui uma existência própria que não pode ser fracionada sem o destruir”(Louis, p.188) Portanto, o todo é composto de partes, mas as partes do todo em si mesmas não podem ser compreendidas como o todo ele mesmo.  Assim, “o que é composto de alguma coisa, de tal modo que o todo constitui uma unidade, não é um amontoado, mas é como uma sílaba.  E a sílaba não é só as letras das quais é formada, nem BA é idêntica a B e A, nem a carne é simplesmente fogo e terra:  de fato, uma vez que os compostos, isto é, carne e sílaba, tenham-se dissolvido, não mais existem, mas as letras, o fogo e a terra continuam a ser.  Portanto, a sílaba é algo não  redutível unicamente às letras, ou seja, às vogais e consoantes, mas é algo diferente delas.  E assim a carne não é só fogo e terra, ou quente e frio, mas  algo diferente delas.  Ora, se esse algo devesse ser, também ele, um elemento ou um composto de elementos, dar-se-ia o seguinte:  se fosse um elemento, valeria o que dissemos acima ( a carne seria constituída por esse elemento com fogo e terra e por algo diferente, de modo que iríamos ao infinito); se fosse, ao invés, um composto de elementos, seria, evidentemente, composto não de um só, mas de vários elementos ( do contrário, estaríamos ainda no primeiro caso), de modo que dissemos a propósito da carne e da sílaba.  Por isso, deve-se reter que esse algo não é um elemento, mas a causa pela qual esta coisa determinada é carne, esta outra é sílaba, e assim para todo o resto.  E isso é a substância de todas as coisas: de fato, ela é causa primeira do ser”(Metafísica, 1041b, 11-28; Reale (1994), p.360-362)  Pois, a essência de um dado objeto ou coisa é aquilo que lhe é próprio e a nenhum outro pertence.
            

Em um outro exemplo, Aristóteles nos diz que “por matéria entende o bronze, por exemplo, por forma o contorno da sua figura, e pela composição dos dois a estatua, o todo concreto”(Metafísica, 1029a, 5).  E uma vez que “a matéria é uma coisa, a forma uma segunda e o composto de ambas uma  terceira, e todos os três são substâncias, a própria matéria é em certo sentido parte de uma coisa, e em outro sentido não o é, mas apenas os elementos que consiste a definição da forma”;  Ou seja, “o bronze é uma parte da estatua realizada, porém não da estatua tomada no sentido de forma ( com efeito, é a forma, ou a matéria dotada de forma, que devemos entender pela coisa, mas nunca o elemento material em si mesmo.”(Metafísica, 1035a,2)  Busca-se, pois, compreender “a causa da matéria, isto é, a forma pela qual a matéria é determinada coisa:  e esta é, justamente, a substância”(Reale, 1994, p.360).  Portanto, o real para Aristóteles não é nem a matéria nem a forma, mas uma composição entre forma e matéria.  

            

Em suma, pode-se concluir que o todo não é apenas a justaposição das partes que o compõe, pois, quando estas se unem para formar o todo ocorre uma modificação qualitativa.  Assim, todas as partes estão ligadas entre si numa indissolúvel unidade, de sorte que cada uma delas é essencial e indispensável e possui uma “função” determinada e insubstituível a tal ponto que uma falta pulverizaria a unidade do todo e uma variação geraria a desordem.  Isto significa que as partes ligadas e unidas entre si, constituem e delineiam  o todo, ou seja, a integridade do  todo resulta da conexão das partes entre si.  E cada parte do todo só tem realmente valor quanto ligada a esta totalidade; ou seja, o todo - além de ter as suas partes ordenadas, possui uma grandeza que não é qualquer - interage organicamente com as suas partes.  Para compreendê-lo é necessário a compreensão da sua organização interna. Portanto, para provar a atualidade de tal conceito basta  nos reportar ao que diz Luigi Pareyson acerca do tema, mesmo que tal conceito aristotélico não tenha sido intencionalmente para a arte, mas sim para a natureza, “porém a profunda intuição do seu pensamento nos autoriza a extrapolar rumo a criação artística [...] pois, Aristóteles concebeu a natureza precisamente como uma espécie de arte.  A criação artística se converte assim em produção de objetos dotados de uma estrutura e, portanto, de uma economia interna, ou seja, de seres autônomos, que exigem que sejam compreendidos e julgados em função de sua própria organização, sem referências externas”(Pareyson, p.89)


Bibliografia

ARISTÓTELES. Metafísica. Porto Alegre: Ed. Globo, 1960
_____________.   Poética. In: Os Pensadores/Aristóteles. São Paulo: Abril Cultural, 1973
GRASSI, Ernesto.Arte y mito. Buenos Aires, 1968
LOUIS, Pierre.  La découverte de la vie. Paris:  Hermann, 1975
REALE, Giovane. História da Filosofia Antiga. São Paulo: Loyola, 1993(vol.I), 1994(vol. II)
PAREYSON. Luigi. Conversaciones de Estetica. Madrid: La Balsa de la Medusa/Visor, 198


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