sábado, 20 de agosto de 2016

Cinema Palestino: "O que resta do tempo" (Ronaldo Campos)




O que resta do tempo
                                             The time that remains


               Uma produção da Palestina, França, Bélgica e Reino Unido




Em primeiro lugar, tenho que deixar claro que adoro a diversidade representada pelo cinema. Cada cultura tem a sua própria maneira de ver e sentir o mundo. Certamente, de todas as artes, a que melhor representa e apresenta essas formas de ver é o cinema. Contudo, atualmente, os cinemas têm se restringido a exibir apenas determinados tipos de filmes de algumas cinematografias bem específicas. Além disso (com o desaparecimento dos cinemas de rua), há quase que a exclusividade das salas de cinema em centros de compra.  Predominando ali o cinema voltado para o interesse das grandes massas.

Os lançamentos de dvds, a internet e a tv a cabo acabam nos dando uma grande oferta de títulos. Mas é necessário garimpar. Como o ouro de aluvião, os filmes diferentes estão perdidos no meio de tanto cascalho.



Outro dia, comprei um dvd em virtude da sua nacionalidade. Não sabia praticamente nada sobre a história, os atores e os seus realizadores. O filme em questão aqui é "O que resta do tempo". É uma produção palestina de 2009. Elia Suleiman  é ator, diretor, roteirista e produtor desse filme. Realizou também os longas "7 dias em Havana"(2012), "Cada um com o seu cinema (2007) e "Intervenção Divina" (2002)

Foto do ator, diretor, roteirista, e produtor, Elia Suleiman



Elia Suleiman não pode ser considerado um ilustre desconhecido. No meio cinematográfico, ele é um nome relevante. O seu filme "Intervenção Divina" teve grande repercussão em todo o mundo, chegando a ser cogitado para o Oscar de Melhor filme em língua não inglesa. Mas, a Palestina não é reconhecida como um país ainda. O que impediu a sua indicação.

O filme "O que resta do tempo" é formado por quatro episódios interligados que buscam reconstituir o dia a dia dos cidadãos árabes israelenses que preferiram ficar em sua terra natal. Desta forma, eles se constituem enquanto uma minoria local dentro do Estado de Israel. O diretor Elia Suleiman apresenta essas histórias de modo ousado e com um  humor bastante ácido. Alguns críticos classificaram o filme como uma "comédia de humor negro".
A partir dos diários do seu pai (um palestino que lutou contra o Estado de Israel), das cartas de sua mãe, das suas memórias afetivas, Sulleiman traça um panorama da Palestina ocupada por Israel a partir de 1948.

Este filme não tem propriamente uma história com começo, meio e fim. Como disse são histórias que se interligam contando de forma crítica a vida dos árabes numa Palestina ocupada. Em parte, a história desse filme é autobiográfica. As memórias íntimas do diretor se confundem constantemente com a história coletiva de um país em desaparecimento.

O filme é iniciado com um prólogo no presente (ano de 2009), onde, um motorista de táxi pega um passageiro no aeroporto e avisa pelo rádio que fará uma longa viagem até um vilarejo do interior. A partir de um jogo entre plano e contra-plano, somos apresentados a imagens que utilizam ao extremo a questão da frontalidade que por sua vez limita o ponto de fuga, limita a nossa visão. É como se colocássemos no lugar do motorista que não consegue enxergar nada por causa da pesada tempestade. O diretor (sentado no banco de trás do táxi), do mesmo modo, que o cidadão árabe israelense que é marcado pela limitação dos seus direitos num estado (que ao mesmo tempo  é e não é seu ) delimitado (restrito) pela imposição do outro. 

Nós não conseguimos ver claramente quem é o passageiro. A sua imagem aparece quase sempre desfocada e, em poucos segundo, podemos vê-lo de longe. Um dado curioso deve ser aqui mencionado: quem interpreta esse passageiro é o próprio diretor. Ele está interpretando a si mesmo. Lembre-se que o filme é parcialmente autobiográfico.

O motorista se perde em virtude de uma pesada tempestade com muitos raios. O motorista está confuso e perdido. Quando o carro para num acostamento, somos remetidos a cidade de Nazaré, em 1948. Era a época da primeira guerra entre árabes e judeus. Ocorrida após a criação do Estado de Israel. Esse período é denominado pelo autor, logo nos créditos inciais, como uma "crônica de um presente ausente".

Na primeira parte do filme, a ação (o tempo\memória) se desenrola de forma dinâmica. Suleiman conta a sua história e a de seus pais. O tempo histórico é dividido em quatro momentos:  junho de 1948, 1970, 1976 e a Nazaré de 2009. 






Em junho de 1948, em virtude da  vitória e da ocupação de Israel, muitas pessoas de Nazaré optam ou por ficar ou por lutar até a morte. Poeticamente, o diretor mostra o resultado dessa guerra. Muitos vão embora, deixando a sua antiga vida para trás. Laços afetivos e sociais  são interrompidos bruscamente. 


Se muitas pessoas partiram, outras ficaram. Estas buscaram resistir ao invasor. A resistência se dá silenciosamente ou através de algum ato heroico. Não há bombas, terroristas ou grandes atentados no filme. Toda a história se concentra nas pessoas comuns e nas suas ações. 

A revolta e as formas de resistências foram silenciadas pela força militar, pelo controle sistemático e pelo próprio tempo. O que não quer dizer que o conflito ou a inconformidade foram eliminadas definitivamente. 

Provavelmente a cena mais impactante, desta primeira parte do filme é aquela em que um  jovem árabe suicida diante dos soldados judeus e dos prisioneiros árabes. Antes de atirar na sua cabeça, este homem tira do seu bolso um pequeno papel e lê a seguinte mensagem: 



Um homem honrado tem duas metas: morrer lutando ou alcançar a vitória.
Não quero viver se não formos respeitados em nossa terra. 
Devo carregar a minha alma na mão e não jogá-la nas cavernas da morte. 
Se nossas palavras não ecoarem pelo mundo, uma vida para alegrar os corações dos meus amigos ou uma morte para torturar os corações dos   inimigos




Esta mensagem busca mostrar que mesmo o povo árabe esteja controlado há sempre a esperança de se conquistar a sua autonomia e soberania através do reconhecimento da Palestina como uma Nação .

Os outros momentos que seguem são mais leves e poéticos.  Como por exemplo, a imagem da mesa posta numa casa abandonada que é invadida para esconder um homem ferido. Percebemos aqui o rompimento de uma história familiar a partir dessa nova estrutura social imposta pela guerra. Na casa, agora ocupada por uma outra pessoa, não seguirá as tradições dos seus antepassados. Mas viverá sob a ótica da aculturação imposta pelo grupo vencedor. É possível ver uma certa dissonância entre o real e o que é representado pelo filme. Há soldados israelenses que apreciam música no meio da rua, dobram graciosamente roupas de cama, pelotões de fuzilamento que não matam ninguém, o próprio personagem do filme é um homem islâmico com physique-du-role hollywodiano. O episódio de 1948 surge diante dos nossos olhos como uma farsa teatralmente montada. Percebe-se assim que o objetivo do diretor não era traduzir em imagens uma verdade histórica, mas nos apresentar uma crítica ácida a situação dos árabes nos territórios ocupados pelos israelenses. O diretor é extremamente sutil. É importante perceber pequenos detalhes para entender as críticas e o humor proposto pelo diretor\produtor.






O próximo episódio ocorre anos depois, em 1970, quando começamos a ver a rotina da minoria árabe que vive em Israel. Os fatos vão se desenvolvendo lentamente mostrando como é viver sobre o controle israelense. Os costumes árabes meio que desaparecem e são substituídos (ou pelo menos tentam substituí-los). Como quando  o coro de meninas muçulmanas canta na escola de minoria árabe uma canção em honra ao Dia Nacional de Israel com arranjo árabe. A animação das autoridades judaicas pode ser contraposta com as carinhas desanimadas dos alunos e alunas dessa escola. 
Outro momento de ironia do diretor ocorre na cena em que o menino  Elia traz para casa um prato de lentilhas dado por sua  Tia Olga. O nome da tia é tipicamente judaico, mas as lentilhas são tipicamente árabes. A tia não sabe fazer este prato. A sua comida é intragável. Essa situação se repete algumas vezes e sempre o menino Elia joga as lentilhas no lixo. É como se a cultura "produzida"  pelos judeus para os árabes não tivesse significado ou importância, por isso deveria ser eliminada e nunca consumida. De modo sutil, o diretor mostra uma forma de resistência usada pelos árabes. Resistir ao que nos é dado (imposto) é um modo de preservar quem de fato somos.






A aceitação da cultura dominante se dá de forma aparente e em virtude da imposição pela força militar. O sonho de libertação não se dilui. Em algumas cenas, percebemos que há sempre o questionamento. Seja nas do vizinho que sempre busca de forma lógica uma ação que deveria ter sido realizada para conter os israelenses. Seja no caso do outro vizinho que sempre tentar incendiar o seu próprio corpo. Seja nas cenas onde Elia é repreendido pela direção da escola por um dos seus  questionamentos acerca de Israel ou dos Estados Unidos.







A escola primária dos árabes é mostrada como um espaço de dominação ou doutrinação. Não há liberdade de pensamento. Os meninos e meninas árabes têm que aprender a cultura dos dominadores. Na cena do coral, citada acima, toda a sala é enfeitada com bandeirinhas de Israel e o uniforme dos meninos e meninas é na cor da bandeira do Estado Judaico.




O filme se estrutura como se fosse um mosaico, as história que são contadas (e recontadas) descortinam uma história que só fará sentido se compreendermos a história daqueles que a produzem. Não conseguiremos compreender  a alegria e o sofrimento desse povo sem um olhar atento para a história que o contextualiza. Por exemplo, a história da tia que começa a perder a visão por ver  TV  (a versão oficial dos fatos) quase o tempo todo.  A televisão apresenta não a cultura do seu povo mas os valores que devem ser absorvidos pelo povo árabe segundo as autoridade judaicas. Aqui podemos perceber uma certa angústia diante da dificuldade de preservar uma cultura diante de um ambiente hostil e da pasteurização. 

Curiosamente, o diretor nos mostra que o comportamento desses personagens não é lógico. Pelo contrário, é bastante arbitrário (mas não é destituído de sentido). Algumas vezes foge do que ocorreria normalmente. Como por exemplo, no caso do vizinho que trabalha no posto de gasolina, que sempre quer incendiar o seu corpo em virtude do fato de não ter sentido continuar vivendo daquela forma.




De 1976 a 2009, a rotina dos personagens se torna cada vez mais simplificada,  repetitiva e carente de um sentido mais amplo em virtude do processo de aculturação e pasteurização da cultura local. O olhar dos personagens ficam cada vez mais distante. A câmera fica cada vez mais longe e o foco fica cada vez mais impessoal. O cotidiano se torna cada vez menos interessante. A vida dos personagens fica  sem sentido. Percebemos que os personagens do filme (nesse contexto de dominação\subordinação\imposição) estão se confrontando com os problemas da sua existência finita e limitada. O tempo existe, estamos vivos e inseridos neste contexto, mas o que podemos fazer com ele?



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