segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Empirismo, Inatismo e Educação

Empirismo, Inatismo e Educação


Durante muito tempo, a Filosofia tentou solucionar um dilema: como podemos explicar a natureza dos princípios racionais?
Inicialmente, podemos afirmar que a razão / o raciocínio se constitui como uma forma de conhecimento discursivo que se faz por meio da palavra (faculdade de julgar). Para compreender o mundo, para organizar o caos, a razão supera as informações concretas e imediatas que recebe, organizando-as em conceitos ou idéias gerais que, devidamente articulados podem levar à demonstração e a conclusões que se consideram verdadeiras.
O Conhecimento discursivo é o conhecimento mediato. É  aquele conhecimento que se dá por meio de conceitos = é o conhecimento que se dá/ se opera por etapas, por encadeamento de idéias, de juízos e raciocínios que levam a determinadas conclusões. A razão precisa realizar abstrações (abstrair = isolar, separar de) e a lei cientifica é abstrata
Durante séculos, a filosofia oscilou entre uma resposta fundada no inatismo e outra desenvolvida a partir do empirismo[1]
Para o empirismo, o saber tem inicio pela experiência dos sentidos / das sensações. Os objetos exteriores a nossa mente nos excitam. As sensações se reúnem e formam uma percepção; isto é, percebemos uma coisa ou um único objeto que nos chegou por meio de sensações diversas. As idéias, que nos foram trazidas pela experiência, são levadas à memória e, de lá, a razão as apanha para formar os pensamentos. É a experiência que marca no nosso espírito as idéias. A razão vai associá-las, combiná-las ou separá-las, criando os nossos pensamentos. Para os defensores do empirismo,



[1] Nós podemos apreender tanto real pela razão como pela intuição. O encaminhamento do texto seguirá os critérios indicados pela lógica da razão e não pelos da intuição. 


“a razão, a verdade e as idéias racionais são adquiridas por nós pela experiência. Antes da experiência,dizem eles, nossa razão é como uma folha em branco; uma tabula rasa onde nada foi gravado. Somos como uma cera sem forma e sem nada impresso nela, até que a experiência venha escrever na folha, gravar na tabula, dar forma à cera. A razão é uma maneira de conhecer e a adquirimos (por meio da experiência sensorial) no decorrer de nossa vida.”[1]

Em suma, o conhecimento para o empirismo só tem inicio após a experiência sensível. A reflexão se reduz à experiência interna do resultado da experiência externa produzida pela sensação. Há um grande destaque ao papel do objeto. E a razão se apresenta subordinada ao trabalho da experiência. Como exemplos de teorias que podem ser identificadas com o empirismo podemos citar o positivismo, o behaviorismo e a instrução programada.
Segundo Marilena Chauí, segundo o inatismo,

“ao nascermos trazemos em nossa inteligência não só os princípios racionais mas também algumas idéias verdadeiras, que, por isso, são tambéetm inatas. O empirismo, ao contrário, afirma que a razão, com seus princípios, seus procedimentos e suas idéias, é adquirida por nós pela experiência.”[2]

O inatismo não parte da realidade do mundo. Busca no sujeito os critérios para o estabelecimento da verdade. No idealismo / subjetivismo, o intelecto é superior aos sentido. As idéias são intemporais e permanentes. A realidade está sempre primeiramente no sujeito e se apresenta na forma de idéias. As idéias gerais não derivam do particular, mas já se encontravam no espírito como instrumento de fundamentação para a apreensão de outras verdades. Por serem inatas, não estão sujeitas ao erro e o critério para se chegar a verdade está em nosso próprio espírito-razão[3].
Mesmo nos dias de hoje, existe a crença em “uma essência humana” que propõe-se efetivar.. Primeiro, supõe-se que o homem a tenha e que ela seja imutável; segundo, supõe-se que ela seja tal qual foi formulada por aquela cultura, naquele tempo. E é atribuído à educação a função social de realizar um certo ideal do que o homem deve ser

Dentre os filósofos que se destacam pela abordagem inatista podemos citar Platão e Descartes. Este último tratou do tema principalmente nas obras Discurso do método e Meditações metafísicas.
Nessas obras, Descartes nos mostra que o nosso espírito possui três tipos de idéias que se diferenciam segundo sua origem e qualidade. São elas: idéias adventícias, idéias fictícias e idéias inatas.
As primeiras, as adventícias, são aquelas que nos chegam a partir da nossa sensação. São percepções e lembranças. São idéias que nos vêm por termos tido experiências sensíveis das coisas a que se referem.

“São, de um lado, as idéias das qualidades sensoriais – a cor, sabor, textura, tamanho, lugar, etc. – e, de outro, as idéias das coisas percebidas por meio dessas qualidades. São também as opiniões formuladas a partir dessas idéias ou nossas idéias cotidianas e costumeiras, geralmente enganosas ou falsas, isto é, são opiniões recebidas e que, em geral, não correspondem à realidade das próprias coisas.”[4]

Já o segundo tipo, as idéias fictícias, são aquelas que elaboramos a partir da nossa imaginação, criatividade e fantasia. Nós somos capazes de compor seres fantasiosos e mágicos com partes de seres que existem verdadeiramente. Quem nunca imaginou fadas, cavalos alados, dragões ou super-heróis?
Tais idéias nunca poderão ser consideradas verdadeiras, visto que não tem correspondência com o mundo concreto.
O terceiro tipo (e o mais importante) é composto pelas idéias inatas. Estas são inteiramente racionais e só podem existir porque já nascemos com elas. Por exemplo, os princípios da razão – identidade, não-contradição, terceiro excluído, razão suficiente – são idéias inatas. Também são inatas idéias denominadas pelo pensamento cartesiano de noções comuns da razão: “o todo é maior que as partes”,  por exemplo.
São também inatas as idéias simples (= idéias não compostas) conhecidas por intuição[5] intelectual (por exemplo: o cogito – “penso, logo existo”). Por serem simples, as idéias inatas são conhecidas por intuição e são também o ponto de partida para a dedução racional e indução, que nos possibilita conhecer as idéias complexas ou compostas.

“As idéias inatas, diz Descartes, são ‘a assinatura do criador’ no espírito das criaturas racionais, e a razão é a luz natural inata que nos permite conhecer a verdade. Visto que as idéias inatas são colocadas em nosso espírito por Deus, serão sempre verdadeiras, isto é, sempre corresponderão integralmente às coisas a que se referem, e, graças a elas, podemos julgar quando uma idéia adventícia é verdadeira ou falsa e saber que as idéias fictícias são sempre falsas (não correspondem a nada fora de nós).”[6]  

Vocês poderão se perguntar qual a relação do conceito filosófico do inatismo com a educação e a prática pedagógica? Quem poderá nos responder é o filosofo Paulo Ghiraldelli Jr., com a sua obra História da educação brasileira[7].
Anteriormente, nós já havíamos citado as visões positiva e negativa da infância. Para o filósofo,
“Essas visões da infância têm uma íntima ligação com as posições filosóficas elaboradas no inicio dos tempos modernos. Do resultado da relação dessas posições filosóficas com as finalidades da educação postas por essas configurações origina-se ao menos duas grandes filosofias da educação: a filosofia (da educação) de René descartes (1596-1650), tipicamente iluminista, e a filosofia (da educação) de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), com indicações que apontam para o Romantismo. Essas concepções filosóficas não aparecem apenas como ligadas exteriormente a tais configurações, mas ajudam efetivamente na própria formulação conceitual dessas configurações de infância e de educação”.
Tanto para Descartes quanto para Rousseau a tarefa do pensamento e, em especial, a tarefa da filosofia, é a busca da verdade por meio da razão – nisso eles se mantém adeptos de uma definição clássica da filosofia. Perguntam, então, o que impede ao homem saber decidir se um enunciado é falso ou verdadeiro. Criam uma explicação para o erro.
Para o cartesianismo, o erro está na imaginação, nas sensações e, principalmente, na preponderância da vontade sobre o entendimento, fazendo com que os juízos apressados. O homem assim faz, segundo tal acepção, porque ainda não conseguiu se libertar de atitudes que são próprias das crianças – atitudes infantis. Nesse caso, a atitude de dar crédito ao sonho e as sensações, não sabendo usar a razão despida de imagens, é vista como típica da infância o fato de a vontade impulsionar o homem a tomar decisões antes de o entendimento ter formulado o que é correto, também é uma atitude infantil. Assim, a infância é tomada como não sendo uma boa fase. Quando mais cedo o homem escapar dela, menos levará consigo resquícios de atitudes que atrapalharão o seu juízo. A infância, portanto, deve passar o quanto antes.
Rousseau, diferentemente, acredita que a busca da verdade, antes de passar pela razão, depende de instâncias morais. Para o rousseaunismo, o oposto da verdade, o erro, não é somente a falsidade, mas a mentira. E quem não mente? A criança não mente – diz o rousseaunismo. Pois para Rousseaua natureza é intrinsecamente boa e a criança é o ser ainda não maculado pela cultura, o que está mais próximo da natureza, e, portanto, o mais apto a poder chegar a verdade. Assim, quanto mais tempo a infância durar, mais o homem adulto ficará contaminado pelo vírus da ingenuidade e da bondade, essenciais na vida adulta para, não maculando a visão moral, não macular a razão.
Como essas filosofias da educação moderna – iluminista e romântica – se consubstanciam em pedagogias, no sentido mais estrito desse termo? No caso da educação e, digamos, no caso da educação sistemática e escolar ou para-escolar, a filosofia da educação moderna prepara procedimentos pedagógicos em um padrão mais simplificado, normativo. São esses padrões que, em geral, denominamos de pedagogia, no sentido restrito e mais comum.”[8]

GHIRALDELLI JR faz referência a duas imagens. A primeira datada é um sinete da Escola gratuita de gramática de Lowth. Datada de 1554, no dístico interno lemos: “quem poupa a vara odeia a criança



[1] CHAUÍ, Marilena. Convite á Filosofia. São Paulo: Ática, 2002. p. 71.

[2] CHAUÍ, Marilena. Convite á Filosofia. São Paulo: Ática, 2002. p. 69.

[3] Percebemos aqui a crença na idéia da existência de uma natureza humana: algo essencialmente humano. A doutrina que defende que certos particulares têm certas propriedades essencialmente ao passo que têm outras propriedades apenas acidentalmente é conhecida como essencialismo. Por exemplo, na cidade grega de Atenas, viveu um famoso filosofo: Sócrates. Podemos afirmar que Sócrates é essencialmente humano, mas só acidentalmente vivia em Atenas. Então, Sócrates não poderia não ser um ser humano, mas poderia não ter vivido em Atenas. Ou seja, o fato de ser homem é necessário. Enquanto que a nacionalidade desse homem é contingente.
Entretanto, muitas criticas foram feitas a tal abordagem. Isso porque, no mais das vezes, os empreendimentos educacionais estabelecidos a partir dessa teoria são equívocos na prática, pois resultam defendendo interesses particulares, locais, como se fossem universais. Por exemplo, quando o grego pensa “o ser” ou “as virtudes humanas”, pensa o “ser grego” e as “virtudes gregas”
[4] CHAUÍ, Marilena. Convite á Filosofia. São Paulo: Ática, 2002. p.70.

[5] Uma Intuição é uma forma de conhecimento imediato (= feito sem intermediário; “visão súbita”). É  inefável; inexprimível. Ao mesmo tempo, é importante por ser o ponto de partida do conhecimento, a possibilidade da invenção, da descoberta, dos grandes “saltos” do ser humano. A intuição pode ser dividida em três tipos básicos:  intuição sensível – é o conhecimento imediato que nos é dado pelos órgãos dos sentidos: sentimos calor; vemos a cor das flores; ouvimos o som da música; intuição inventiva – é a do sábio, do artista, do cientista, quando repentinamente descobrem uma nova hipótese, um tema original; intuição intelectual – é a que se esforça por captar diretamente a essência do objeto.

[6] CHAUÍ, Marilena. Convite á Filosofia. São Paulo: Ática, 2002. p.70.
[7] GHIRALDELLI JR., Paulo. História da educação brasileira. São Paulo: Cortez, 2006.
[8] GHIRALDELLI JR., Paulo. História da educação brasileira. São Paulo: Cortez, 2006.-p. 20.


figura 1
A segunda imagem é um quadro de 1793. intitulado “Professora Republicana.

 figura 2

Diz GHIRALDELLI JR que tais imagem podem gerar uma certa estranheza. Quem conceberia nos dias de hoje um estabelecimento de ensino que propaga a idéia de castigos físicos como forma pedagógica de ensino. Também, é estranho uma imagem de uma professora mantendo uma relação tão próxima e tão individualizada. Para o autor, “são gravuras representativas de certo cuidado especifico com as crianças, um cuidado que depende da existência, na mentalidade das pessoas, de alguma noção de infância e, portanto, de algum tipo de consenso sobre educação.”[1]
“O sinete da ‘Escola Gratuita de Gramática de Louth’ mostra que o professor impõe aos seus alunos uma disciplina que, no limite, contempla a punição física. Tal punição tem como objetivo tornar a vontade infantil disciplinada. Se, em Descartes, a ultrapassagem do entendimento ou da razão pela vontade é exatamente o que conduz o ser humano ao erro, então nada melhor para a educação se pudermos serenar os ânimos do desejo, que é corpóreo, de modo que a vontade possa se exercer com comedimento. E estaremos dando à vontade a chance de se comportar racionalmente, com autonomia, isto é, como poder racional sobre si mesma. Torná-la autônoma – mesmo que no limite isto implique em punição física, é colaborar para a atuação do entendimento mais livre e mais capaz, portanto, é colaborar com a libertação do individuo em relação ao erro. Com a vontade perfeitamente racional, e os desejos dominados, o entendimento pode julgar com clareza e distinção. O aprendizado do conhecimento verdadeiro, o que”. inclui a capacidade de poder julgar o que é verdadeiro e o que é falso, depende de uma disciplina da razão que é também aprendida – a razão perfeita é a harmonia entre vontade racional e entendimento. O professor, com regras externas, colabora para a internalizarão de regras, possibilitando o surgimento do homem a partir da finalização da infância.
O quadro ‘Professora Republicana’, ao contrário do sinete, mostra a fruição em comum de um texto. Educador e educando comungam um texto (um exame visual minucioso poderia deixar ver que o texto é a ‘Declaração Universal dos Direitos do Homem, usada como cartilha). Todavia, há certas ambigüidades na gravura, muito provavelmente propositais, que dizem mais do que o titulo do quadro. O garoto parece muito jovem para saber ler. Seu rosto é o de uma criança que, nos dias de hoje, chamaríamos de pré-escoar. Então, o papel que ambos seguram é simbólico (ainda mais em se tratando mesmo da ‘Declaração dos direitos do Homem’). Por outro lado, a professora é mesmo professora? Ela contém traços de mãe e de moça sensual. Aparece como mãe na medida em que está próxima demais da criança; aliás, poderíamos até arriscar que a criança está no seu colo. Ela é sensual, mostrando-se atrativa, convidando para a comunhão de uma história, para o compartilhamento de uma atividade aconchegante. Cabelos levemente desalinhados, brinco exposto e uma claridade sobre o pescoço que força o nosso olhar para os seios. Os seios, por sua vez, através do jogo de luz e sombra do quadro ganham relevo. Ou seja, a moça é alguém com quem fazer algo íntimo, como por exemplo, ler uma historia ou apreciar uma gravura, deve ser uma coisa bastante agradável. Por fim, não é uma moça comum, nem uma mãe comum. O quadro lembra, para uma boa parte das pessoas, muitas vezes menos as gravuras clássicas e mais o quadro da Virgem Maria com o menino Jesus. E isto santifica a relação entre ambos – a relação é prazerosa, mas antes de tudo pura, pois há pureza de coração em ambos os parceiros. A relação é mesmo muito íntima. Se há algum aprendizado, ele não está sendo feito de modo direto, pois a moça, a adulta, não está falando algo à criança, mas ao contrário, ambos apreciam algo que está no papel, algo que, de certo modo, só eles pode ver, e nós não inteiramente! Ambos, garoto e professora, contém sorrisos monaliseanos em suas bocas. Há uma satisfação na comunhão do que está no papel, o que seria o texto. As mãos de ambos se juntam para segurar o papel. A educação que está ocorrendo ali depende da experiência da comunhão de subjetividades puras e sinceras. Caso contrário não haverá educação. Aliás, em se tratando do texto ‘Declaração Universal dos Direitos do Homem’, o termo ‘experiência da comunhão’ significa uma experiência subjetiva e intersubjetiva ao mesmo tempo, ou seja, uma psique que se enlaça a outra por meio de um elemento comum posto socialmente: a realização de uma sociedade livre. A verdade não está aparecendo para eles por causa de uma disciplina imposta ‘de fora para dentro’, mas por causa de uma disciplina que está sendo trazida ‘de dentro para fora’. A verdade surge da relação honesta, íntima que cada um tem com o que está no papel e que cada um tem com o outro; ambos são companheiros de viagem.
O primeiro quadro diz respeito a um modelo de ensino em que poderíamos encontrar a tradição cujo representante seria o cartesianismo; e o segundo quadro diz respeito a um modelo de ensino no qual poderíamos ver a tradição cuja inspiração seria rousseauísta. O primeiro, tem ver com o que mais tarde foi batizado como ‘pedagogia tradicional’. O segundo, tem a ver com o que mais tarde se autodenominou de ‘pedagogia nova’ (isso em meados do XIX e mais propriamente no século XX). Essas pedagogias, assim representadas, são as versões populares da pedagogia moderna – elas são o nosso senso comum ocidental sobre as posturas pedagógicas possíveis. Em ambos os modelos, a instituição escola aparece como imprescindível.”[2]



[1] GHIRALDELLI JR., Paulo. História da educação brasileira. São Paulo: Cortez, 2006. p.22.
[2] GHIRALDELLI JR., Paulo. História da educação brasileira. São Paulo: Cortez, 2006. p.22-23.





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