segunda-feira, 29 de agosto de 2016

CONCEITO, LINGUAGEM E FISICIDADE NA ARTE CONTEMPORÂNEA


CONCEITO,  LINGUAGEM  E  FISICIDADE   NA  ARTE  CONTEMPORÂNEA

Texto de Ronaldo Campos publicado originalmente na revista Augustus, 

Referência: http://www.unisuam.edu.br/augustus/pdf/ed13/rev_augustus_ed_13_11.pdf


O advento da arte moderna, principalmente,com as primeiras exposições impressionistas e com as vanguardas históricas gerou na crítica es-pecializada um complexo de culpa e de intimida-ção, uma vez que ela não foi capaz de reconhece r o valor da nova arte que surgia. “A instituição da novidade como valor fundamental da arte tornou-se uma espécie de terrorismo que inibe o juízo crítico e garante a vigência de qualquer idéiaidiota” (GULLAR, 1993, p. 15).
Em contrapartida, essa abrangência absoluta e a não-funcionalidade da arte na atual condição cultural levou a um esvaziamento do seu sen-tido para a maior parte do público fruidor. Con-seqüentemente, o processo de contemplação/fruição se tornou para a maioria das pessoas algo altamente subjetivo, individualista e solipsista. Aparentemente, tem-se a impressão de que no mundo atual não há mais espaço para a obra artís-tica na sua forma tradicional (pintura e escultura). Observam-se, com freqüência, sinais cada vez mais eloqüentes da ausência e da impossibilidade de apreensão da linguagem do objeto artístico contemporâneo. A arte estaria se perdendo no i-material, no vazio, isto é, estaria vivendo a morte do seu ser arte.
Esse tipo de abordagem niilista tornou-se mais freqüente quando toda a radicalidade da obra de arte, do processo de formação do objeto artístico e do mercado de arte moderna/contemporânea foi absorvida e integrada nas estruturas capitalistas de produção/consumo. Todavia, este processo foi seguido concomitantemente por uma série de rea-ções (ainda mais radicais) por parte de artistas, historiadores e críticos de arte vinculados às poéticas da modernidade. A “arte é apenas o conceito de arte, que se separa de qualquer experiência da realidade, de qualquer finalidade social ou ideo-lógica, de qualquer noção histórica da arte, de qualquer teoria da arte ou estética” (GULLAR, 1993, p. 16). Uma dessas reações foi a retoma-da, atualização e radicalização da atitude van-guardista proposta pelas poéticas do ready madede Marcel Duchamp e do objet trouvé dos surrea-listas. Nessas poéticas situa-se grande parte da produção artística contemporânea.
Por exemplo, a pop art não só recusou como também provocou o escárnio e o insulto às for-mas tradicionais das belas artes. Inspirado pelos ideais do neodadaismo, o artista elege e atribui valor artístico a um objeto de consumo típico da sociedade industrial. Ele

"troça polemicamente do mundo industrializado que o rodeia, expõe os achados arqueológicos de uma contemporaneidade que se consome dia a dia, petri-fica no seu irônico museu as coisas que vemos todos os dias sem nos darmos conta do fato de funciona-rem aos nossos olhos como feitiços". (ECO, 1986, p. 206).

O artista busca o acaso para encontrar inten-ções de arte naquilo que não é intencional. Ele “descobre analogias entre os comportamentos da arte e os do acaso, e coloca sobre os segundos as intenções do primeiro” (IDEM, p. 184): o objeto não existe como obra de arte, antes do olhar do artista ter incidido sobre ele. Ou seja, tirando do seu contexto habitual e subtraindo a sua função concreta (o valor que possui para a sociedade) pa-ra repropô-lo, numa condição de imunidade, co-mo um objeto avaliável apenas no plano estético, dando-lhe, porém, a entender que a passagem para o nível estético não é senão a sua última degradação, com a qual a estupidez macroscópica do objeto torna-se emblemática da estupidez da sociedade de consumo.
No processo de desmaterialização das formas tradicionais das belas artes, ao se apresentar objetos típicos da sociedade capitalista (como uma roda de bicicleta ou um suporte de garrafas) ou de estruturas da natureza como sendo as novas formas artísticas, os artistas desse tipo de poética não terão reintegrado a arte do seu tempo num contexto social? Ou então, eles não terão iniciado democraticamente todos os fruidores na apreciação de novas relações entre forma, uso e linguagem?
Ou ainda, celebrando um protesto individualista, esses artistas se tornaram, em ultima análise, o modelo desejado pela própria sociedade contra a qual aparentemente protestavam? Alguns dirão que a rendição da produção artística à ditadura do consumismo capitalista ou à poética do acaso gerou um tipo de arte que se remete ao conceito de nada proposto por Malevich, reduzindo a pintura à aniquilação da pintura, a escultura à aniquilação da escultura. Um sintoma claro desse processo foi o aparecimento de maneira regular das pinturas monocromáticas: telas inteiramente brancas ou inteiramente negras. A preocupação era, sobretudo, com a superfície da tela e com a natureza do pigmento aplicado. Sua abordagem pode ser caracterizada como uma extrinsecação física, como um estudo dos fatos de uma superfície bidimensional.
Nas telas (e nas formas) monocromáticas de Ad Reinhardt aparentemente não há “nada a ver”, mas pouco a pouco, descobrimos que há muito a olhar: “o elemento mesmo da dupla distância, de uma ‘profundidade rasa’, em que o cromatismo do Obscuro trabalha entre um signo de profundidade e uma afirmação diferencial de zonas pintadas, sempre referida à superfície” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 194), nos leva a partir do questionamento do estatuto da obra de arte a uma nova delimitação da forma artística. 

Forma? Espírito, espírito das formas, formas das formas? Forma das formas, formalismo, uniformalidade? Uma forma? Ciclos de estilos, arcaicos, clássico, formas tardias? Formas rompidas, impressionismos, formas vazias? Má forma, boa forma, forma correta, incorreta? Segue a forma imunda a função-lucro? Forma sem substância? Sem fim? Sem o tempo? (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 209).

O objeto artístico contemporâneo não precisa de justificativas elaboradas a priori e externamente: ele simplesmente existe. Está aí e pronto. É preciso “sentir a alma, sem ter de explicar por palavras, e representar esta sensação” (WEITEMEIER, 2001, p. 15). Espera-se que o fruidor também responda fisicamente, percebendo a pintura apenas como base na evidência visual do que está ali, sem procurar qualquer outro tipo de significado.

Situando a arte num nível pré-lingüístico e prétécnico, a atividade do artista reduz-se ao gesto, a obra à matéria não-formada, mas ainda assim animada e significante. A arte já não tem relação com a sociedade, com suas técnicas e linguagem; é regressão a partir do objeto, existência em estado puro e, como a existência pura é a unidade ou a indistinção de tudo o que existe, na matéria o artista realiza sua realidade humana (ARGAN, 1992, p. 450).

Qualquer busca de uma intencionalidade simbólica a priori nos desviaria do rumo; a imagem pode ter mil significados ou nenhum. É a própria obra de arte que nos fornecerá os instrumentos e a chave de leitura para a sua interpretação. É necessário buscar nela mesma a sua linguagem interna.

A forma se oferece à contemplação no próprio ato de se mostrar como tal, e diante dela nada resta a fazer senão deter-se admirando-lhe a harmonia, pois suas partes vivem da vida do todo, e a economia instituída pela lei de coerência que a governa lhe expungiu e cortou as partes supérfluas, superabundantes e anormais e nela integrou as partes que faltavam
ou eram incertas e imperfeitas. E gozável é, por isso, a foram nessa sua harmonia, na sua aderência à finalidade que ela é em si mesma, na sua perfeição interna que não se preocupa com referências extrínsecas, no seu caráter definido e determinado, irrepetível e inconfundível, na sua vida e equilíbrio e adequação recíproca entre as partes e o todo (PAREYSON, 1993, p. 187-188).

Portanto, há apenas duas possibilidades, em torno das quais trabalham os artistas ditos conceituais, que aceitam a identificação entre arte e reflexão sobre a arte. A primeira consiste em manter a distinção entre arte e linguagem, ao reconduzir a arte a sua elementariedade técnica (no caso da pintura, o ato de pintar paredes). Verificase o grau de existência que se realiza e se consome na operação artística ao se identificar o existir do artista com a sua metodologia de pesquisa, de modo que seja conduzida com meios da arte, ou seja, através de uma linguagem não verbal.

A segunda consiste na comunicação recíproca entre arte e escrita, partindo do postulado de que a linguagem escrita, em sua diferença estrutural em relação à linguagem verbal, pertence ao mesmo universo significante da arte. Desde as colagens cubistas com letras de alfabeto e os numerosos casos de letrismos figurativos, chega-se com Opalka, ao emprego das escritas como material de pintura, às diversas formas de poesia visual e até a proposta de deduzir um texto figurativo a partir do puro e simples desmanchar um texto literário.

Ad Reinhardt reduziria a pintura. Ao Negro extremo (Ultimate Balck Painting), quadrado perfeito de 1,50 m de lado: ‘uma pintura que é simplesmente uma pintura negra e nada mais’. Assim, de certo modo a pintura era uma definição de pintura, ou de sua redução extrema. Mas a geração seguinte descobriu um meio de levar isso ainda mais longe, o que marca o começo da arte conceitual. Joseph Kosuth (n. 1945) aproveitou a deixa dada por Reinhardt e apresenta a sua definição de pintura em dicionário, com 1,20 m de lado, em lugar de superfície negra (READ, 2001. p. 312).

Em suma, a saída para o artista é uma espécie de tautologia: a pintura é pintura, a arte é arte. Assim, se a arte se define fazendo arte – e fazer arte é também definir o que é arte –, o processo artístico não é apenas pensamento, mas, sim, pensamento formativo. Para Ives Klein, a atividade, etapa entre a idéia e o produto final, é parte imprescindível do processo de formação do objeto artístico. Em seu diário, ele escreve:

A arte deixou de ser [...] uma espécie de inspiração vinda não se sabe de onde, avançando ao acaso e representando apenas o lado externo e pitoresco das coisas. A arte é algo que existe de per se, complementada pelo gênio e obedecendo aos imperativos de uma necessidade vital e sujeita a uma predestinação transcendente (WEITEMEIER, 2001, p. 19).

O que não significa ser as poéticas da contemporaneidade destituídas de sentido e nada pode é possível ser dito, pois, falando-se delas, passarseia da esfera do agir para a esfera do discurso. Mas mesmo quando a arte tinha uma função, quantas coisas não foram ditas com as artes, embora pudessem ter sido ditas de outra maneira. Isso ocorria porque as artes estavam integradas num sistema cultural cuja estrutural era o discurso e a linguagem. Hoje, essa estrutura parece ter se perdido. Mas, assim mesmo, seria imprudente afirmar que a verdadeira e única linguagem da arte contemporânea é o silêncio. Pois, isso equivaleria destituir de sentido todo o processo de fruição
do objeto artístico.
A linguagem da pintura pode ser reduzida até concentrar-se simplesmente nas relações entre cores e formas, mas mesmo assim ela apresenta um sentido, uma linguagem, todas passíveis de serem apreendidas pela fruição: num primeiro momento poderíamos situar a fruição da obra artística contemporânea como o reconhecimento da forma em sua materialidade. O que significa que a obra de
arte deve ser apreendida inicialmente através da sua textura e da sua materialidade, em todas as sua particularidades especificas, na singular unidade realizada a cada momento, do material e de seus caracteres construídos ou significativos. 
O problema lingüístico continua a ser, sem dúvida, o problema crucial da cultura moderna e contemporânea. É sabido que a linguagem já não é mais o fator unificador utilizado por todas as disciplinas, para formar unitariamente uma cultura, mas constitui em si mesma uma disciplina especifica e autônoma. Por isso, a arte se enuncia e se auto-analisa com os meios da arte, e não da linguagem, que pode enunciar e analisar apenas a si mesma. Aparentemente, isso pode significar que quando o artista passa a refletir unicamente sobre o conceito de arte, sobre o seu ser em si, uma vez que já não pode existir nenhuma relação entre o trabalho do artista e o pragmatismo da sociedade, o próprio conceito de arte mostra-se insustentável, pois, como a arte é apreendida como uma entidade metafísica, podendo ser reconhecida apenas nas modalidades diferenciadas de seu fazer. Isto ocorre
não com a arte, mas com os tipos de arte que ao modo das disciplinas autônomas, são obrigadas a
se fecharem no círculo de suas metodologias, por não terem mais função no mundo.
Todavia

ao fazer arte, o artista não só não renuncia à própria concepção do mundo, às próprias convicções morais, aos próprios intentos utilitários, mas ainda os introduz implícita ou explicitamente na própria obra, aonde eles vêm assumidos sem serem negados; se a obra é bem sucedida, sua própria presença se converte numa contribuição ativa e intencional ao seu
valor artístico e a própria avaliação da obra exige que se o tenha em conta. Além disso, a arte não consegue ser tal sem a confluência dos outros valores nela, sem sua contribuição e apoio, de modo que dela emana uma multiplicidade de significados espirituais e se anuncia uma variedade de funções humanas (PAREYSON, 1989, p. 45).

O conteúdo e a linguagem de uma obra de arte são o seu próprio modo de formar. Longe de degradar o conteúdo espiritual em mero valor formal, tal afirmação tem em conta que a obra de arte não precisa procurar o próprio conteúdo e a sua própria linguagem em mero valor formal. O conteúdo da obra de arte deixa de ser visto como tema, para se prolongar em direção à inteira humanidade do artista e da cultura de sua época. 
A realização do valor artístico não é possível senão através de um ato humano, que nele condensa aquela plenitude de significados com que a obra age no mundo e suscita ressonâncias nos mais diversos campos e nas mais variadas atividades, e pelo qual o interesse despertado pela arte não é apenas uma questão de gosto, mas uma satisfação completa das mais diversas exigências humanas. Uma vez que os diversos valores contribuíram para a realização do valor artístico sem se dissolverem nele ou se anularem, e ainda, alimentando-o e revigorando-o, faz patê da própria qualidade artística da obra esta sua diversa funcionalidade humana, pela qual a fruição da obra de arte não só não é perturbada por apreciações de outra natureza ou pela utilização, mas as inclui e incorpora.
A obra de arte é necessariamente um estímulo a um processo de interpretação porque é essencialmente  o resultado de um processo de formação. Estes dois aspectos são na verdade um só: a sua capacidade de exigir interpretação consiste no fato de ser conclusão de um processo formativo.
É neste sentido que se deve enfatizar a compreensão da forma e da linguagem da obra de arte, pois não há conhecimento que também não seja interpretação, ou seja, um tipo de conhecimento ativo e pessoal. A sua natureza ativa explica o seu caráter produtivo e formativo e sua natureza pessoal explica como é possível que a interpretação seja ao mesmo tempo movimento, tranqüilidade, busca de sintonia, isto é, “incessante figuração”. Todavia, o ato de interpretar não deve ser entendido como algo exclusivamente “ativo”, nem o interpretante deve submeter passivamente a imposição de um objeto impenetrável. Pois. A interpretação é ao mesmo tempo receptividade que se prolonga em atividade e atividade em vista de uma receptividade: um agir que se dispõe a receber.
Interpretar é uma forma de conhecimento em que, de um lado, receptividade e atividade são indissociáveis e, do outro, o conhecimento é uma forma e o cognoscente é uma pessoa. Sem dúvida,
a interpretação é conhecimento – pois interpretar é captar, compreender, agarrar e penetrar. Ora, o conceito de interpretação resulta da aplicação de dois princípios fundamentais para a filosofia do homem: em primeiro lugar, o princípio graças ao qual todo o agir humano é sempre e ao mesmo tempo receptividade e atividade e, em segundo lugar, o principio segundo o qual todo o agir humana é sempre de caráter pessoal. Considerando o conhecimento à luz desses dois princípios, temos precisamente, a interpretação. Assim, toda ação humana não se caracteriza rigorosamente por ser criativa, visto que toda iniciativa é ou provocada ou sugerida e sempre começa quando o próprio movimento tem início, nunca nasce espontaneamente. Há, pois, na liberdade do homem, uma necessidade inicial – uma indicação de seu ser principiado, dos seus limites, da brevidade concreta do seu existir, daquela receptividade inicial e constitutiva – pela qual ele é dado a si mesmo e sua iniciativa é dada a si mesma. Se a arte contemporânea estivesse condenada a um silêncio perpetuo, a sua existência não teria sentido e fatalmente estaria destinada a se extinguir. Portanto, a estrutura da iniciativa daquele que busca a linguagem da obra de arte é congênita e essencial à sua atividade, é uma receptividade que a constitui e qualifica os seus próprios desdobramentos. Sendo, pois, contemplável e fruível, a obra de arte se oferece à contemplação, no próprio ato de se mostrar como tal. Diante dela, nada resta a fazer senão deter-se, admirando-lhe a harmonia, pois as suas parte vivem da vida do todo. Toda fruição se dá na harmonia formal, na sua aderência à finalidade que ela é em si mesma, na sua perfeição interna que não depende de referências extrínsecas, no seu caráter definido e determinado, irrepetível e inconfundível, na adequação recíproca de suas partes entre si e com o todo.
A obra de arte – seja um quadro figurativo, abstrato ou um acontecimento como um happening – é o que há de mais comunicável e aberto. A sua característica comunicativa se encontra em toda a sua realidade física, e não remete a um significado que a transcenda, porque a sua própria existência é o seu significado, ou seja, espiritualidade e fisicidade coincidem plenamente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARGAN, Giulio. Arte Moderna. São Paulo: Cia das Letras, 1992.

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998.

ECO, Umberto. Definição de arte. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

GULLAR, Ferreira. Argumentação contra a morte da arte. Rio de Janeiro: Revan, 1993.

PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. São Paulo: Martins Fontes. 1989.

PAREYSON, Luigi. Estética: teoria da Formatividade. Petrópolis: Vozes, 1993.

READ, Hebert. Uma história da pintura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

WEITEMEIER, Hannah. Klein. Köln: Taschen, 2001.




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