domingo, 27 de fevereiro de 2011

Quanto vale ou é por quilo



Outro dia, no programa Sala de Cinema, vi o diretor Sérgio Bianchi. Ele apresentou idéias, conceitos e objetivos de vários dos seus filmes. Confesso que esse programa me fez rever algumas de suas obras. Como exercício mental, resolvi escrever alguma coisa sobre o filme Quanto vale ou é por quilo.




“A ESCRAVIDÃO levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-deflandres. A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber. perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas. Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas.”

Machado de Assis






Comentários sobre o filme “Quanto vale ou é por quilo?”
É muito comum no Brasil ouvir que a condição histórica de corrupção na política brasileira é fruto de uma “inércia histórica”. Talvez possamos chamar também de “inércia social”. É curioso esse termo, pois ele trata da união entre uma lei puramente física e um conceito sociológico. A inércia é a conservação de um estado dinâmico de um corpo num sistema. Se algo está num dado estado dinâmico, seja de movimento ou de repouso, ele tende a ficar nesse estado se não houver razão suficiente alguma que o impeça, ou seja, se não houver nada opondo a manutenção, natural, desse estado dinâmico.
“Quanto vale ou é por quilo?” mostra exatamente essa “inércia social”. A “inércia social” está no filme retratar que a história brasileira não muda, ela está estática, barrada, bloqueada de transformação.
Mais vale pobres na mão do que pobres roubando” é o slogan do filme. A resenha do filme “Quanto vale ou é por quilo? ”, do diretor paranaense Sergio Bianchi (2005), uma livre adaptação do conto machadiano “Pai contra mãe”, faz um paralelo entre o antigo comércio de escravos e a atual exploração da miséria pelo Marketing Social, com o intuito de mostrar as semelhanças no comportamento mercadológico das duas época. Com uma narrativa entrecortada, assistimos, no século XVII, um capitão-do-mato captura uma escrava fugitiva, que está grávida e, Após entregá-la ao seu dono, a escrava aborta o filho que espera. Outra história, agora nos dias atuais, quando uma ONG implanta o projeto de informática em uma comunidade carente da periferia. Arminda, que trabalha no projeto, descobre que os computadores comprados foram superfaturados e, por isso, precisa ser eliminada. Candinho, um jovem desempregado cuja esposa está grávida, torna-se matador de aluguel para conseguir dinheiro para sobreviver.
“Quanto vale ou é por quilo?” utiliza linguagens variadas para contar essa história. Entre elas, trechos de documentários e pequenos contos de enredo, baseados em crônicas de Nireu Cavalcante, extraídas de autos do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Apesar de ser um filme de ficção, a escravatura é mostrada como está descrita nesses documentos, e em outros escritos históricos da época.
Ao traçar esse paralelo entre o século XIX e o tempo atual, o filme questiona até que ponto a estrutura da sociedade brasileira realmente mudou da época colonial até hoje. O cinema de Sérgio Bianchi é um cinema socialmente engajado, sarcasticamente questionador que coloca em cheque tudo o que se fez até hoje em sociedade. O longa enfoca um tema extremamente polêmico, a falência das instituições no Brasil, mostrando uma solidariedade de fachada que visa o lucro, seja ele social, político ou econômico. Uma “indústria da miséria” extremamente útil, desde ontem, com a comercialização dos escravos e hoje, com a criação dos intitulados projetos de assistência social. São colocados à vista as grandes mazelas e contradições de um país em constante crise de valores morais. A sociedade é vislumbrada na óptica mercadológica. A relação econômica que contrapõe casa-grande e senzala é análoga a relação entre a elite econômica e os excluídos do subúrbio.
Para o diretor, o Brasil se enveredou por um caminho de inversão de valores do qual ninguém escapa. Somos forçados a aceitar que essa situação é tão antiga, que podemos ver a sua origem intrinsecamente ligado à cultura brasileira. Desde os primórdios da nossa história, a corrupção e suas conseqüências estão espalhadas por todos os lugares. Bianchi recorre ao Arquivo Nacional para dar densidade a sua denúncia. Como todos os filmes-denúncia assume um tom documental para fazer verdade o discurso de seu autor.
Bianchi ataca ainda a indústria da boa ação, por meio da qual, além de se lavar a alma, gera-se empregos e movimenta-se a economia, sem, no entanto, interferir na vida dos supostos beneficiados (os pobres, outra vez). Quase ao final dois personagens definem o seqüestro como mecanismo de distribuição de renda e de justiça social. Leia abaixo íntegra da entrevista do diretor, marcada por suas interrupções e provocações. Preocupado com as generalizações de seu filme, que não relativiza nada ou ninguém.
O filme de Bianchi se coloca na contra-corrente de um ascendente “pensamento altruísta”, que tem na ideologia do voluntariado a solução para todos os males da humanidade e na “responsabilidade social” das empresas o selo da mercantilização da compaixão. Nele, a forte identidade nacional é dissecada pela hipocrisia e cinismo nas histórias da vida cotidiana do Brasil de hoje e de duzentos anos atrás. Não poupa o espectador das cenas fortes (que implica num certo convencimento do público do quão significativa e importante é seu trabalho), o diretor pode ser acusado de apelar para as mesmas táticas que se mostra disposto a rechaçar. Como, por exemplo, quando abusa em imagens que mostram mendigos que vomitam e crianças acorrentadas. Sob a égide do real, são mostradas excluídos sem qualquer teor paternalista. Por exemplo, quando são entregues os computadores numa escola pobre. Depois da inauguração oficial, a comunidade invade a sala onde estão os pcs e manda ver nos teclados, monitores e CPUs, empurrando alguns deles no chão. São seres irracionais em frente a um brinquedo novo que eles não entendem nem querem entender. Primatas em guerra com a máquina pelo prazer da anarquia.
Questões filosóficas sobre o Bem
Partindo da idéia filosófica a respeito da natureza do bom, podemos afirmar que a natureza do bom deve ser procurada numa relação peculiar entre o interesse pessoal e o interesse geral. Também deverá ser procurada na forma concreta que essa relação assume de acordo com uma estrutura social determinada.
Isso implica em que não nos ofereça um conteúdo determinado do bom, único para todas as sociedades e todos os tempos. Este conteúdo varia historicamente; certamente, pode ser a felicidade, a criação e o trabalho, a luta pela emancipação nacional e social, etc. Mas o conteúdo concreto só é moralmente positivo numa apropriação do individuo e da comunidade. Assim, se o bom é a felicidade. Esta deve entender-se como aquela que, longe de excluir a dos demais, necessariamente a pressupõe. A felicidade de certos indivíduos ou de um grupo social, que somente se pode alcançar à custa da infelicidade dos outros – de sua dor, de sua miséria, de sua exploração ou opressão – é hoje profundamente imoral. Se o conteúdo do bom é a criação, esta, embora tenha um valor em si mesma, será também imoral se faz crescer as desgraças dos outros. Finalmente, se a luta, o heroísmo e o sacrifício fazem parte do comportamento moral positivo, isso só ocorre na medida em que servem a um interesse comum a emancipação de um povo ou de todo um grupo. Vemos portanto, que o bom esta numa peculiar relação entre os interesses coletivos e pessoais. Partindo do fato de que o individuo é um ser social e de que a sociedade não é um aglomerado de átomos sociais, individuo e sociedade implicam-se necessariamente, do que decorre a sua relação necessária na qual não podemos isolar nenhum dos termos. Mas a necessiddade desta relação não significa que, historicamente, tenham estado sempre numa vinculação adequada; exatamente naquela que constitui a verdadeira esfera do bem.
A afirmação do individuo não é algo dado desde as primeiras formas de organização social, mas algo que o homem conseguiu somente na sociedade moderna. A individualidade não é um dom gratuito, mas uma conquista. Mas, na sociedade moderna, baseada na propriedade privada, a afirmação do individuo se traduz numa afirmação egoísta da personalidade, à custa dos demais. Por isso, o egoísmo ético não é somente uma doutrina, mas uma forma real de comportamento efetivo dos homens, na qual os interesses particulares e os gerais se separam. O oposto deste individualismo é uma comunidade abstrata, burocrática ou desumanizada, na qual o pessoal é absorvido pelo geral ou por uma suposta universalidade atrás da qual nada mais do que a expressão de interesses particulares muito concretos.
Em nossa época, o bom só pode ocorrer realmente na superação da cisão entre o indivíduo e a comunidade, ou na harmonização dos interesses pessoais com os verdadeiramente comuns ou universais.
Situado o bom nesta esfera, podemos falar de diversos graus de adequação do individual e do geral, bem como da realização do bom à medida que se supera o individualismo egoísta.

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