segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Cartilha com orietações para o trabalho no exterior





Ministério das Relações Exteriores, por meio da Divisão de Comunidades Brasileiras e Assistência Consular (DAC), é um dos atores diretamente envolvidos no enfrentamento ao tráfico de pessoas, assegurando a assistência para brasileiros/as em situações complexas como violência doméstica, desaparecimento, inadmissões, distúrbios psiquiátricos, tráfico de pessoas, conflitos sociais, repatriação, crises humanitárias, entre outros, respeitando-se os tratados internacionais vigentes e a legislação do país estrangeiro.




Em razão desse papel de destaque no contato com brasileiros/as em outros países, a DAC, a Coordenação-Geral de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Contrabando de Migrantes (CGETP) do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) e a Organização Internacional para Migrações (OIM) elaboraram Cartilha para orientar e informar sobre direitos e serviços disponíveis aos nacionais quando estiverem fora do Brasil, assim como apresentar recomendações para realizar uma viagem segura.

Para acessar a cartilha, clique no link abaixo:

https://www.gov.br/mre/pt-br/embaixada-nicosia/cartilha-trafico-de-pessoas-e-orientacoes-para-o-trabalho-no-exterior

Estas sinistras festas de Natal

Estas sinistras festas de Natal

Por Gabriel García Márquez

Ninguém mais se lembra de Deus no Natal. Há tanto barulho de cornetas e de fogos de artifício, tantas grinaldas de fogos coloridos, tantos inocentes perus degolados e tantas angústias de dinheiro para se ficar bem acima dos recursos reais de que dispomos que a gente se pergunta se sobra algum tempo para alguém se dar conta de que uma bagunça dessas é para celebrar o aniversário de um menino que nasceu há 2 mil anos em uma manjedoura miserável, a pouca distância de onde havia nascido, uns mil anos antes, o rei Davi.

Cerca de 954 milhões de cristãos – quase 1 bilhão deles, portanto – acreditam que esse menino era Deus encarnado, mas muitos o celebram como se na verdade não acreditassem nisso. Celebram, além disso, muitos milhões que nunca acreditaram, mas que gostam de festas e muitos outros que estariam dispostos a virar o mundo de ponta cabeça para que ninguém continuasse acreditando. Seria interessante averiguar quantos deles acreditam também no fundo de sua alma que o Natal de agora é uma festa abominável e não se atrevem a dizê-lo por um preconceito que já não é religioso, mas social.

O mais grave de tudo é o desastre cultural que estas festas de Natal pervertidas estão causando na América Latina. Antes, quando tínhamos apenas costumes herdados da Espanha, os presépios domésticos eram prodígios de imaginação familiar. O menino Jesus era maior que o boi, as casinhas nas colinas eram maiores que a Virgem e ninguém se fixava em anacronismos: a paisagem de Belém era complementada com um trenzinho de arame, com um pato de pelúcia maior que um leão que nadava no espelho da sala ou com um guarda de trânsito que dirigia um rebanho de cordeiros em uma esquina de Jerusalém.

Por cima de tudo, se colocava uma estrela de papel dourado com uma lâmpada no centro e um raio de seda amarela que deveria indicar aos Reis Magos o caminho da salvação. O resultado era na realidade feio, mas se parecia conosco e claro que era melhor que tantos quadros primitivos mal copiados do alfandegário Rousseau.

A mistificação começou com o costume de que os brinquedos não fossem trazidos pelos Reis Magos – como acontece na Espanha, com toda razão –, mas pelo menino Jesus. As crianças dormíamos mais cedo para que os brinquedos nos chegassem logo e éramos felizes ouvindo as mentiras poéticas dos adultos.

No entanto, eu não tinha mais do que cinco anos quando alguém na minha casa decidiu que já era hora de me revelar a verdade. Foi uma desilusão não apenas porque eu acreditava de verdade que era o menino Jesus que trazia os brinquedos, mas também porque teria gostado de continuar acreditando. Além disso, por uma pura lógica de adulto, eu pensei então que os outros mistérios católicos eram inventados pelos pais para entreter aos filhos e fiquei no limbo.

Naquele dia – como diziam os professores jesuítas na escola primária –, eu perdi a inocência, pois descobri que as crianças tampouco eram trazidas pelas cegonhas desde Paris, que é algo que eu ainda gostaria de continuar acreditando para pensar mais no amor e menos na pílula.

Tudo isso mudou nos últimos 30 anos, mediante uma operação comercial de proporções mundiais que é, ao mesmo tempo, uma devastadora agressão cultural. O menino Jesus foi destronado pela Santa Claus dos gringos e dos ingleses, que é o mesmo Papai Noel dos franceses e aos que conhecemos de mais. Chegou-nos com o trenó levado por um alce e o saco carregado de brinquedos sob uma fantástica tempestade de neve.

Na verdade, este usurpador com nariz de cervejeiro é simplesmente o bom São Nicolau, um santo de quem eu gosto muito e porque é do meu avô o coronel, mas que não tem nada a ver com o Natal e menos ainda com a véspera de Natal tropical da América Latina.

Segundo a lenda nórdica, São Nicolau reconstruiu e reviveu a vários estudantes que haviam sido esquartejados por um urso na neve e por isso era proclamado o patrono das crianças. Mas sua festa é celebrada em 6 de dezembro, e não no dia 25. A lenda se tornou institucional nas províncias germânicas do Norte no final do século 18, junto à árvore dos brinquedos e a pouco mais de cem anos chegou à Grã-Bretanha e à França.

Em seguida, chegou aos Estados Unidos, e estes mandaram a lenda para a América Latina, com toda uma cultura de contrabando: a neve artificial, as velas coloridas, o peru recheado e estes quinze dias de consumismo frenético a que muito poucos nos atrevemos a escapar.

No entanto, talvez o mais sinistro destes Natais de consumo seja a estética miserável que trouxeram com elas: esses cartões postais indigentes, essas cordinhas de luzes coloridas, esses sinos de vidro, essas coroas de flores penduradas nas portas, essas músicas de idiotas que são traduções malfeitas do inglês e tantas outras gloriosas asneiras para as quais nem sequer valia a pena ter sido inventada a eletricidade.

Tudo isso em torno da festa mais espantosa do ano. Uma noite infernal em que as crianças não podem dormir com a casa cheia de bêbados que erram de porta buscando onde desaguar ou perseguindo a esposa de outro que acidentalmente teve a sorte de ficar dormido na sala.

Mentira: não é uma noite de paz e amor, mas o contrário. É a ocasião solene das pessoas de quem não gostamos. A oportunidade providencial de sair finalmente dos compromissos adiados porque indesejáveis: o convite ao pobre cego que ninguém convida, à prima Isabel que ficou viúva há 15 anos, à avó paralítica que ninguém se atreve a exibir.

É a alegria por decreto, o carinho por piedade, o momento de dar presente porque nos dão presentes e de chorar em público sem dar explicações. É a hora feliz de que os convidados bebam tudo o que sobrou do Natal anterior: o creme de menta, o licor de chocolate, o vinho passado.

Não é raro, como aconteceu frequentemente, que a festa acabe a tiros. Nem tampouco é raro que as crianças – vendo tantas coisas atrozes – terminem acreditando de verdade que o menino Jesus não nasceu em Belém, mas nos Estados Unidos.

Machuca



Machuca é uma produção conjunta entre Chile, Reino Unido, França e Espanha  de 2003, dirigida por Andrés Wood. Responsável também pelo roteiro e produção. O elenco é composto por Ariel Mateluna, Manuela Martelli, Aline Kuppeheim, entre outros.

O título do filme faz uma referência a um nome extremamente comum no Chile. Machuca, o Pedro, nosso personagem principal representaria os milhares de meninos que vivem um pouco esquecidos pela sociedade e pelo governo. Ele é um garoto comum como tantos outros.

A história pode ser resumida da seguinte forma: no ano de 1973, durante o governo de Salvador Allende,  Gonzalo Infante (Matías Quer) (de origem europeia) estuda no Colégio Saint Patrick na mais importante escola da capital chillena.  Gonzalo é um menino rico que vive na região mais nobre da cidade com seus pais e sua irmã. 

Durante esse período, o Chile passa por uma série de reformas sociais que objetivam garantir a justiça social para todas as classes. Dentro dessa perspectiva, o padre McEnroe (Ernesto Malbran), o diretor do colégio, implementar muitas mudanças na escola. A mais importante foi a de incluir jovens carentes\pobres como novos alunos da escola  Saint Patrick. 



Pedro Machuca (Ariel Mateluna) é um desses jovens pobres (de origem indígena) que vão estudar no colégio de elite. Nesse novo ambiente, ele se sente  deslocado. Os valores do grupo dominante não sãoe os seus. O que a escola valoriza, ele não domina. Por ser tão diferente, Machuca sofre com os novos colegas. É provocado. Mas, nesse novo ambiente, pouco amistoso, ele conhece  Gonzalo com quem terá  uma verdadeira amizade, apesar das grandes diferenças sociais\culturais entre eles.




No filme “Machuca”,  podemos perceber duas ideias de educação: a tradidois garotos de 11 anos, Gonzalo Infante e Pedro Machuca, que vivem em  mundos separados por uma muralha invisível que alguns sonham em derrubar na intenção de construir uma sociedade mais justa. A sociedade está instalada em meio a uma ideologia onde os ricos serão sempre mais ricos e para eles as melhores coisas. Enquanto aos pobres lhe restam as piores condições de vida, e o que é pior, sem direito a educação. É a velha história de uma classe mais privilegiada dominando outra menos favorecida.   
A contradição desta ideologia é proporcionada pela  Escola Inclusiva, que deve tentar auxiliar, na medida do possível, a constituir um sujeito cidadão, para uma sociedade para todos, como o padre McEnroe no filme, diretor de um colégio particular de elite onde Gonzalo estuda. Em meio à política comunista instalada por Salvador Allende no país, o diretor decide fazer uma integração entre estes dois universos, abrindo as portas do colégio para os filhos das famílias do povoado. É assim que Pedro Machuca ,vai parar na mesma sala de Gonzalo, ponto de partida para uma amizade cheia de descobertas e surpresas ,apesar do abismo de classe existente entre eles. , que acontece paralelamente ao clima de enfrentamento que vive a sociedade chilena na violenta transição de Allende para Pinochet. Delinea-se uma visão através do filme  um problema social , um problema público - a questão da inclusão social - que vem tomando forma e exigindo novas práticas educacionais e sociais. Incluir é criar, criação no sentido das intersecções de afetos, áreas, valores, conceitos, saberes e pessoas.
Tentar implantar a escola inclusiva, parece-nos de início um caminho árduo de ser trilhado. Pois é preciso se fazer uma análise crítica profunda das realidades sociais de cada escola e principalmente de cada aluno. Isso numa sociedade capitalista é algo quase impossível, porque as pessoas quanto mais têm, mais querem, surgindo assim as grandes desigualdades sociais e constantes lutas. È como se comparássemos com a teoria da filosofia do sujeito. Pois segundo Nietzsche o sujeito é apenas uma peça ficcional a mais na luta dos fracos contra os fortes, no qual os primeiros estão sempre ganhando dos segundos. Ou seja, é mais uma estratégia da ovelha para introjetar culpa no lobo. Pois A ovelha (o fraco) usa toda sua astucia para enfraquecer e dominar o lobo(o forte). Sendo o forte é aquele, cujos desejos, paixões e vontades afirmam a vida. Já as ovelhas condenam essas vontades, submetendo-se assim à razão, impondo deveres e castigos aos fortes, induzindo-os a formar uma má consciência. E esse contexto se encaixa perfeitamente dentro da escola tradicional pois é a partir do autoritarismo que se forma esse sujeito de má consciência, pois o indivíduo fica impossibilitado de auto se determinar. Já ao contrário a escola inclusiva(progressista) se está sob forma a forma de antiautoritarismo, valorizando a experiência( impirismo) com base da relação educativa e a idéia de autogestão pedagógica. E através da aprendizagem grupal discussões, assembléia; que são incutidos nos alunos conteúdos de ensino de práticas sociais ligadas ao povo.
É a partir dessa inclusão, dessa mesclagem de indivíduos de várias classes, um vivenciando o problema, as dificuldades, sejam elas sociais, culturais, etc. Pois é a partir da experiência de vida que essa escola possa formar sujeitos autênticos responsáveis pelos seus atos e principalmente formar sujeitos capazes de desenvolver o conceito de solidariedade, e parte da ação para prática. 

O filme retrata uma tentativa de uma democratização dentro da escola. A idéia é boa só teremos uma sociedade mais justa se começarmos a formar alunos solidários uns ajudando os outros. A escola inclusiva é uma tarefa difícil e um caminho árduo, mas é a única esperança que temos para vislumbrar um futuro melhor para todos.       

O Educador com a Palavra na Ponta do Lápis: Uma Crônica de Raymundo Nonato Fernandes

 De todos os personagens do meu livro "Histórias Inspiradoras: as biografias que moldaram o Instituto de Educação de Minas Gerais, uma se destaca. Acredito que é pelo fato de ter conhecido o personagem principal dessa narrativa. É a história de Raymundo Nonato.



A vida, para certas pessoas, parece tecida com o fio de um destino claro, ainda que cheio de curvas. Raymundo Nonato Fernandes, que nasceu lá em Itamarandiba em 1928, no Vale do Jequitinhonha, era um desses.

Décimo terceiro numa lista de diretores, quinto a dirigir o Instituto de Educação de Minas Gerais, o que ele tinha de número ele tinha de palavra. Mestre em filosofia e psicologia, dono de uma cultura que a gente só pode chamar de esmerada, Raymundo não falava: ele encantava. Era um orador com "pleno controle das plateias", como se diz nos livros. O tipo de mineiro que, de tão reservado, quando abria a boca, era para dizer algo que valia o silêncio quebrado.

“Como professor ou conferencista, sua principal arma sempre foi a palavra, por ele manejada com a destreza dos grandes estrategistas.”

Ora, um estrategista que usa a palavra para falar de amor e escola.

Ele cresceu no meio de uma alegria bonita. O pai, Olympio Fernandes Filho, era um gênio autodidata, um animador cultural. Imagino a casa: cheia de livros, talvez um piano desafinado e o cheiro bom de café, com a poesia flutuando no ar. É nesse caldo que Raymundo aprende as primeiras letras, não numa sala de aula fria, mas na sala de estar de D. Quitinha, lá perto do Serro.

Naquele tempo, a escola isolada funcionava na Praça da Matriz, e quem o alfabetizou mesmo foi Zeca de Adelaide, uma amiga da família, com 17 anos. A formação de Raymundo, como a de muitos grandes, começou no íntimo, no aconchego da casa e dos amigos, antes de ir para as "escolas reunidas" em Santa Maria do Suaçuí, acompanhando o trabalho do pai.

Aos doze, o seminário. Nove anos de disciplina, estudo e a certeza de um caminho. Mas, como a vida é uma ironia de contínuos desvios, uma questão política obriga a família a se mudar para a capital. Aquele breve afastamento do claustro foi o suficiente para o destino, sorrateiro, sussurrar: "Não serás padre, Raymundo. Serás educador."

Lá se foi ele fazer o Exame de Madureza — um nome que já é uma crônica em si. E na Faculdade de Filosofia, no edifício Acaiaca, encontra Maria de Lourdes, de tradicional família mineira. O amor, como o conhecimento, também exige um certo bacharelado e licenciatura. Casaram-se e tiveram quatro filhos.

Na capital, trabalhou, deu aulas particulares, foi fiscal de barreiras. Mas o seu púlpito era a educação. Ao lado de Pedro Parafita de Bessa, foi para a Secretaria de Educação e, vejam só, ajudou a fundar e dirigir um ginásio em sua Itamarandiba natal, tornando-o farol para o Norte de Minas. A educação como um ir e vir, um eterno retorno à terra de origem.

Quando chegou à direção geral do Instituto de Educação de Minas Gerais (1967 a 1977), a escola vivia uma "grave crise econômica e de grande agitação política". Pois Raymundo Nonato, o homem da palavra elegante, mostrou-se também um conciliador pragmático.

Se a educação se faz com amor, e o amor está no lar, que se traga o lar para a escola! Criou a Aciemg, a Associação Comunitária, com uma filosofia deliciosa:

“Os pais tornam-se amigos dos professores de seus filhos no lugar de criar problemas.”

É quase uma frase de almanaque, dessas que a gente guarda para os momentos de cinismo. Mas Raymundo acreditava de verdade. Sua gestão foi feita de reformas no prédio, de reorganização de órgãos internos, de criação do Curso de Pedagogia, e daquela convicção simples e imensa de que: “a sala de aula é o berço da nacionalidade.”

E não é que o I Congresso de Orientação e Ensino, feito por ele, deu origem à revista AMAE Educando, que circulou por quase meio século? A palavra, de novo, gerando o futuro.

Sua saída do IEMG em 1977, por uma "atitude equivocada" do secretário da época, foi apenas mais uma curva. O homem que tinha nascido para ser padre, mas se tornou educador, nunca parou. Foi membro titular do Instituto Histórico e Geográfico, onde ocupou a cadeira do patrono Aurélio Pires.

Recebeu insígnias, medalhas, comendas. Mas seu último ato de glória foi um livro, em 2018: Caminhos da Educação. Uma obra que, de certa forma, era sua própria crônica, seu diário de bordo. Raymundo Nonato Fernandes, o mineiro elegante, o contador de histórias, o estrategista da palavra, soube que a educação, como a vida, é um caminho que se faz escrevendo, falando, amando e, sobretudo, deixando a porta aberta para que a comunidade entre.

Faleceu em 1º de abril de 2020. Mas o sorriso, a fala elegante e a convicção de que a escola é o alicerce de tudo, isso fica. Fica na memória, como uma boa crônica lida no jornal da manhã.



segunda-feira, 13 de outubro de 2025

O uniforme azul e branco das normalistas

 


A gente, quando pensa no Instituto de Educação de Minas Gerais (antiga Escola Normal Modelo de Belo Horizonte) e nas jovens estudantes que de lá saíram para alfabetizar e instruir as crianças Minas Gerais na primeira metade do século passado, logo vem à cabeça aquele uniforme clássico: saia e blusa azul e branco, uma coisa sóbria, mas com seu charme. É uma imagem tão forte que ficou, grudada na memória da gente como chiclete quando gruda no cabelo. Mas, ah, a vida tem dessas coisas, de esconder o começo. E se a gente for lá, nos primórdios da história da educação republicana em Minas Gerais, nos primeiros álbuns de fotografia daquela Escola Modelo, vamos descobrir que o começo foi outro, bem diferente. Foi um eco manso da belle époque, trazido para as terras poeirentas da nova Capital.

E que silhueta era aquela! Um vestido longo, cobrindo o tornozelo com um pudor elegante, daqueles que não precisam de muito para dizer muito. A cintura, ah, a cintura era o ponto de honra. Bem marcada, às vezes por um cinto discreto, de gorgurão que nem se notava, ou pelo próprio corte do tecido, que abraçava o corpo sem aperto, mas com compostura.

As saias, essas sim, eram um espetáculo de recato: amplas, como corolas de flor que se abre devagar, cheias de tecido por baixo, de anáguas que davam volume, um suave balão a envolver as pernas. E as mangas, compridas, comportadas, chegando certinhas no punho. E a gola, alta, às vezes com um rendado singelo, um frufru discreto, como um segredo bem guardado.

Nos pés, sapatos fechados, quase sempre pretos, de couro lustroso, com um saltinho modesto, pra dar um ar mais aprumado, sem ousadia. E as meias, escuras, completando aquela aura de recato, de seriedade. A moldura perfeita para um retrato antigo, desses que a gente guarda com carinho.

Mas não se engane. Apesar de toda essa reverência à moda da época, havia ali uma busca pela simplicidade, pela funcionalidade. Afinal, era uniforme de escola, para o dia a dia das moças que sonhavam em ensinar as primeiras letras. As rendas mirabolantes, os bordados suntuosos dos vestidos da alta sociedade ficavam para as festas, para os bailes iluminados a gás. Ali, no pátio da Normal, o que importava era a praticidade, a sobriedade que condizia com a seriedade do aprendizado.

E que interessante essa história do branco para ocasiões especiais, como o funeral do Presidente João Pinheiro em 1907. A formalidade na cor da pureza, em vez do luto preto tradicional. Uma ousadia sutil, talvez? Uma nova mentalidade que começava a despontar, um respeito silencioso, mas com uma roupagem diferente.

E as cores, o branco e o azul marinho, tão clássicos. Mas aí a gente olha outras fotos, e lá estão elas, as mesmas normalistas, vestidas de branco imaculado. Por que será? Talvez fosse o calor da nossa Minas, já castigando mesmo naqueles tempos. Ou quem sabe, uma praticidade maior para lavar e manter impecável aquela brancura toda, símbolo de dedicação.

Fico imaginando essas jovens, com seus vestidos longos e seus sonhos de futuro, circulando por essa Belo Horizonte que ainda cheirava a terra molhada e a obra inacabada. E o uniforme, mais do que uma vestimenta, era um elo, uma identidade, um prenúncio do papel importante que essas mulheres teriam na construção da nossa história. Um branco e azul (ou só branco) que carregava em suas linhas a seriedade do aprendizado e a esperança de um futuro mais instruído. Coisas de um tempo em que até o vestir falava, em que a modéstia e a funcionalidade dançavam um tango lento e elegante.

 

domingo, 12 de outubro de 2025

Minas e a Educação: uma breve consideração histórica (Ronaldo Campos)

 





 


Ao folhear as páginas da história da educação em Minas Gerais, um leitor desavisado poderia jurar que o ano de 1906 marcou o "big bang" das escolas por aqui. Afinal, as primeiras "instituições" (ainda sem nome, numeradas como "Primeiro Grupo Escolar", "Segundo Grupo", e por aí vai, antes de ganharem batismos mais solenes como "Barão do Rio Branco", “Afonso Pena”, “Olegário Maciel”, etc) e a gloriosa Escola Normal Modelo (hoje Instituto de Educação) surgiram no início do século XX. Mas, como em toda boa trama mineira, a história é bem mais intrincada, e suas raízes mergulham fundo no passado colonial.

Esqueça a linearidade, a progressão suave. O caminho da educação em Minas é um mapa salpicado de recomeços e rupturas, uma paisagem acidentada como as próprias serras do estado.

 

 

Primórdios ou Quando Minas Ignorava a Cartilha Europeia

 

No século XVIII europeu, a escola já era vista como um investimento social de peso, o berço de um novo ethos, de condutas civilizadas, saberes escolares e até de um patriotismo recém-cunhado. Enquanto isso, na Capitania de Minas, a realidade era outra. Até meados do século XVIII, o cenário educacional era um verdadeiro deserto. Mas por que tamanha aridez?

A colonização tardia, movida pela febre do ouro no final do século XVII, explica parte do mistério. A Coroa portuguesa, com sua política de "olho vivo", proibiu a instalação de ordens religiosas na capitania, o que, de quebra, engavetou a ação pedagógica dos jesuítas, exímios construtores de colégios. Some-se a isso o número ínfimo de mulheres no início do ciclo da mineração – o que significa poucas famílias estabelecidas – e a própria natureza da população, mais interessada no brilho fácil do ouro do que nos valores da cultura letrada ou na educação dos filhos. Uma gente, digamos, "rude e desprovida de interesse pedagógico".

 

 

Das Escolas Domésticas ao Seminário de Mariana

 

A ausência de escolas institucionalizadas, porém, não significou um vácuo educacional total. As chamadas "escolas domésticas" cumpriam seu papel, com mães alfabetizadoras e "tios-padres" encarregados das primeiras letras. A elite, claro, seguia o roteiro: depois das noções básicas, o caminho era o Rio de Janeiro ou a Bahia, para os educandários jesuítas, e, para os mais afortunados, Coimbra, onde aterrissavam como padres ou doutores.

O jogo começou a virar a partir de 1750, um marco: a fundação do Seminário de Mariana. Por muito tempo, foi o único farol educacional para a juventude mineira, destinado a formar clérigos e preparar jovens para Coimbra. No fim do século XVIII, surgiram outras iniciativas, mais modestas, como o Colégio do Semidouro (para meninos), o Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição de Macaúbas e o Recolhimento São João da Chapada (ambos para moças). E, em 1835, a serra do Caraça viu nascer o famoso colégio dos padres lazaristas, que mais tarde daria origem a uma escola apostólica e um seminário.

 

 

Pombal, Jesuítas e Aulas Avulsas: A Saga de um Ensino Disperso

 

As reformas pombalinas (1759-1772) trouxeram consigo a fatídica expulsão dos jesuítas, um golpe duro para a educação em outras partes do Brasil onde eles comandavam centros escolares. Em Minas, a repercussão foi menor, já que os jesuítas não haviam fincado raízes educacionais por aqui. Seminários e colégios de outras ordens (Oratorianos, Franciscanos e Carmelitas) seguiram existindo.

O Marquês de Pombal, porém, também idealizou as "aulas régias ou avulsas" de Latim, Grego, Filosofia e Retórica. Eram cursos isolados, sem articulação entre si, ministrados por um único professor. Quase trinta anos depois, o Estado português criou o cargo de Diretor Geral dos Estudos para fiscalizar e nomear professores na colônia, mas a medida não decolou. A educação patinou. Em 1772, veio o "subsídio literário", para bancar o ensino primário e secundário. No entanto, o ensino brasileiro continuou disperso, fragmentado, dependendo de professores leigos e, muitas vezes, despreparados.

 

 

O Século XIX: Cidadania na Sala de Aula e a Lei 13

 

Apesar de todos os percalços, o século XIX trouxe uma virada: a escola passou a ser vista como a grande formadora de cidadãos e de comportamentos coletivos. Essas novas expectativas ecoaram no Brasil, gerando um debate e uma enxurrada de leis para normatizar o sistema educacional e definir políticas públicas.

Em Minas Gerais, a primeira legislação da instrução primária, a Lei número 13 de 28 de março de 1835, estruturou a organização do ensino elementar, instituiu a obrigatoriedade da frequência às aulas e lançou as bases para a formação de professores. A primeira escola normal de Minas, em Ouro Preto, em 1840, teve uma vida intermitente, abrindo e fechando as portas até se firmar definitivamente em 1872.

No Império, a política educacional era, para usar um eufemismo, "descontínua". Faltava um sistema que unificasse as práticas docentes e que investisse de forma sistematizada na instrução pública. O ensino era um mosaico de salas de aula esparsas, sem um fio condutor.


 

 

O Grupo Escolar: Uma Revolução Pedagógica do Campo à Cidade

 

A historiadora Lage nos revela que os primeiros grupos escolares no Brasil, inspirados em modelos europeus e americanos de educação popular, nasceram em São Paulo no final do século XIX. A proposta era radical: reunir escolas isoladas em um "agrupamento", transformando o cenário educacional nacional.

Segundo Saviani (2004), o Grupo Escolar foi um fenômeno tipicamente urbano, enquanto o campo ainda teimava em manter suas escolas isoladas. Eram, sobretudo, eficientes na seleção e formação de elites, com a educação para as massas populares ganhando fôlego apenas com a reforma paulista de 1920.

Esses grupos escolares, também conhecidos como "escolas graduadas", revolucionaram a pedagogia:

  • Classificação dos alunos: Por nível de conhecimento, em turmas supostamente homogêneas (as "classes").
  • Ensino simultâneo: Conteúdos organizados e distribuídos de forma racional, com horários definidos.
  • Sistema de avaliação: Introduzido para medir o progresso.
  • Divisão do trabalho docente: Cada sala, uma série, um professor.
  • Edifício escolar: Um conceito novo, com várias salas de aula.

O ensino primário durava quatro anos, com um currículo enciclopédico que buscava a formação integral: física, intelectual e moral. Utilizava o método intuitivo, com materiais didáticos, laboratórios e museus. Exigia disciplina férrea: assiduidade, asseio, ordem, obediência. E o tempo escolar era rigidamente controlado por calendários. Práticas "ritualizadas" e "simbólicas" como exames, exposições e festas cívicas marcavam o ano letivo.

Mais do que instruir, o grupo escolar tinha um projeto cultural para a nação, educando o caráter através da disciplina social – obediência, asseio, pontualidade, amor ao trabalho, honestidade e respeito às autoridades. Valores essenciais para forjar o espírito de nacionalidade.

O sucesso foi tamanho que o modelo se espalhou pelo Brasil como um rastilho de pólvora: Rio de Janeiro (1897), Pará (1899), Paraná (1903), Minas Gerais (1906), Rio Grande do Norte e Espírito Santo (1908), Mato Grosso (1910), Santa Catarina e Sergipe (1911), Paraíba (1916), Piauí (1920), entre outros. Minas Gerais, nesse grande mapa da educação nacional, foi uma das primeiras a aderir, plantando as sementes do que se tornaria seu robusto sistema educacional. E assim, a história da educação mineira, complexa e cheia de curvas, continua a ser escrita.

Para os interessados, algumas indicações de leitura que nortearam o texto:

 

 

SAVIANI, Dermeval. O legado educacional do “longo século XX” brasileiro. In: SAVIANI, Dermeval (et. al.). O legado educacional do século XX no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2004

 

SOUZA, Rosa Fátima de. Lições da escola primária. In: SAVIANI, Dermeval ( et. al.). O legado educacional do século XX no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2004

 

____________________. Templos de civilização. A implantação da escola primária graduada no Estado de São Paulo ( 1890-1910)São Paulo: UNESP, 1998.

 

VIDAL, Diana Gonçalves (org.). Grupos escolares. Cultura escolar primária e escolarização da infância no Brasil ( 1893-1971). Campinas, SP: Mercado das Letras, 2006

 

VIDAL, Diana Gonçalves. Culturas escolares. Estudo sobre práticas de leitura e escrita na escola pública primária ( Brasil e França, no final do século XIX). Campinas, SP: Autores Associados, 2005

 

 


Professor Albanito Vaz Júnior: o Homem que Fez o Português Virar Valsa

 



Se você encontrar com uma ex-aluna do Instituto de Educação de Minas Gerais – IEMG (que estudou na instituição até o início dos anos 2000). O Instituto, convenhamos, formou uma legião de gente que pensa – pode apostar que, em menos de cinco minutos, o nome dele salta na conversa: Albanito Vaz Júnior. E quando o nome vem à tona, não é para cumprir tabela. É para abrir o álbum de saudades.

Albanito Vaz Júnior é um dos professores mais queridos e lembrados do Instituto de Educação de Minas Gerais (IEMG). As suas aulas e os seus trabalhos são os assuntos principais de qualquer encontro de ex-alunos do Instituto de Educação. Quem pode esquecer dos florilégios meticulosamente pensados e apresentados ao som de valsas no auditório do Instituto? Com o seu jeito único, inspirou centenas de alunas do magistério no Instituto de Educação. Provocou também a curiosidade e o amor pela literatura em meninos e meninas do Colégio Batista Mineiro. 

Albanito, nascido em 1934 e falecido há pouco, em 2018, não era um professor de Português e Literatura. Era um showman da Língua Portuguesa. Um maestro das palavras. Onde mais, se não nas aulas dele, a rigidez da gramática e o voo da literatura se encontravam sob a luz de um palco, com direito a valsa e a florilégios?

Pois é. Os florilégios. Aquelas apresentações meticulosamente ensaiadas no auditório, onde a poesia virava teatro e a plateia, suspensa, esquecia por um instante que estava ali para aprender e não para se emocionar. Ele inspirou centenas de normalistas do IEMG com esse jeito único – um misto de erudito, carrasco (no bom sentido, o que exige) e pândego. No Colégio Batista Mineiro, fez o mesmo, despertando em meninos e meninas o fogo da curiosidade pela literatura.

Formado em Letras Clássicas na UFMG em 1957, Albanito podia ter enveredado pela vida acadêmica sisuda. Mas preferiu a sala de aula, o chão de fábrica do conhecimento. Passou décadas ali, moldando mentes. Aposentou-se compulsoriamente na rede estadual aos setenta anos, mas mandar Albanito para casa era como proibir o sol de nascer: simplesmente não acontecia. Continuou lecionando na rede particular, mantendo a chama acesa.

Ele era o que se pode chamar de um clássico. Extremamente culto, dono de uma oratória que parava o corredor e, pasmem, conservava a disciplina da sala de aula com... bom humor. Sim, o paradoxo mineiro: a cultura da Sorbonne com o acolhimento do abraço. Entrava na luta por uma educação de qualidade, engajado no Sinpro Minas, publicando seus artigos, defendendo um país mais justo e soberano até o último suspiro.

Mas o que fica, o que faz dele uma lenda, é a paixão pelo ato de ensinar, que transcendia a matéria. Ele transmitia conhecimento sem nunca esquecer da formação ético-moral. Era a alegria contagiante em pessoa, sempre de braços abertos – o que é um feito para um "carrasco" da literatura.

O depoimento de Selma Medeiros, aluna dele no Curso Normal entre 1969-1971, é a prova final, a certidão de imortalidade. Aos 65 anos, ela descobre que o professor, aquele que a obrigava a ler, escrever, montar, dirigir, contracenar e iluminar (tudo isso numa aula de Português, veja bem), era mais que um mestre. Era um amor que ela passou a vida inteira sentindo sem se dar conta.

Albanito Vaz Júnior, na verdade, não morreu em 27 de abril de 2018. Ele apenas encerrou a peça. Mas, como diz Selma, enquanto houver alguém por aí que consiga fazer pelo menos um pouco do que ele ensinou, Albanito é, e será, imortal. Ele vive na ponta do lápis, na linha lida e, principalmente, na saudade que faz o auditório do Instituto de Educação ficar, de novo, cheio.