sexta-feira, 2 de maio de 2014

Entrevista com a médica e professora Elza Machado de Melo para a Revista Pedagógica do Instituto de Educação de Minas Gerais Ano 2 \ Número 2\ maio 2013 \ Belo Horizonte – MG


Texto da da Revista Pedagógica do Instituto de Educação de Minas Gerais
Ano 2 \ Número 2\ maio 2013 \ Belo Horizonte – MG


Entrevista

Elza Machado de Melo destaca-se por uma trajetória profissional relevante para a sociedade e uma formação identitária coerente como pesquisadora, professora e cidadã. Professora do Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, coordenadora do Núcleo de Promoção de Saúde e Paz/DMPS/FM/UFMG e da Rede Saúde e Paz, criadora e coordenadora do Mestrado Profissional de Promoção de Saúde e Prevenção da Violência (FM/UFMG). É líder do Grupo de Estudos sobre Saúde e Violência. Dentre os seus últimos trabalhos, destaca-se o “Projeto de Atenção Integral à Saúde da Mulher em Situação de Violência” e o seminário “Para elas: por elas, por eles, por nós”.
Nessa entrevista, realizada por Ronaldo Campos e Maria Inês Pereira, a professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais, Elza Machado de Melo destaca a importância de projetos que unem teoria e prática, que buscam uma abordagem integral e que respeitem a diversidade sociocultural. Além de demonstrar a importância do trabalho em rede, que envolve vários atores sociais.


RC: Inicialmente, gostaria que a senhora contasse um pouco como foi o início da sua trajetória acadêmica-profissional.
EMM: Sou professora da Faculdade de Medicina e iniciei a minha trajetória acadêmico-profissional um ano depois de formada como professora no internato rural. São trinta anos de muito trabalho, onde muita coisa aconteceu. As minhas escolhas me conduziram ao lugar onde estou agora e tenho muito orgulho do meu trabalho como médica, da minha formação acadêmica (mestrado e doutorado) e dos projetos e pesquisas que coordeno aqui.
No começo, encontrei muitas dificuldades para desenvolver projetos e programar ações. Eu era uma médica clínica que trabalhava com o orgânico e com questões próprias da saúde e da doença. Era uma jovem recém-formada de vinte e poucos anos que contava apenas com a ajuda de alguns alunos do curso de medicina e tinha que resolver o dilema de trazer algum nível de desenvolvimento para a saúde de uma determinada cidade do interior do nosso país.
A única certeza era a impossibilidade de trabalhar os problemas da área de medicina preventiva e social como se fossem autônomos em relação ao contexto social, político e ideológico do país e do mundo. Era preciso trabalhar com a sociedade como um todo, com a população inteira. Nesse momento, essa tarefa parecia impossível e durante muito tempo me senti impotente diante da grande complexidade da realidade. Apesar de tudo isso, tinha a convicção de era possível levar o conhecimento que foi adquirido aqui na universidade para regiões carentes do nosso estado. E assim iniciávamos os projetos.

RC: No inicio, quais foram as dificuldades para implementar projetos e ações? E como esse impasses foram resolvidos?
EMM: No Brasil, em grande parte das vezes, não há uma continuidade político-administrativa. O que é começado em um mandato pode ser interrompido imediatamente no mandato seguinte. E, assim, durante um bom tempo, começávamos um projeto e logo em seguida “ele se desmanchava”. Para em seguida começar novamente outro projeto que por sua vez também poderia ser “desmanchado”. E nesse começar e recomeçar quase que contínuo, compreendi que era preciso fazer algo imediatamente.
Percebi que era preciso encontrar mecanismos que não deixasse e que não permitissem que os progressos obtidos pelos nossos projetos fossem desperdiçados sempre que ocorresse a substituição do partido político dominante, a posse de um novo prefeito, a mudança do secretário de saúde do município ou a substituição dos profissionais da área de saúde. Era preciso criar alguma base, uma raiz, um vinculo, uma durabilidade para aqueles projetos.
RC: Que elemento é esse?
EMM: Esse elemento pode ser sintetizado da seguinte forma: qualquer projeto só pode ter durabilidade se for um projeto que pertença a todos os sujeitos envolvidos nele. Por isto é tão importante estabelecer parcerias, onde, os participantes são sujeitos reconhecidos e portadores de competências, de vontades e, assim, capazes de construir um mundo, de manter viva a possibilidade de um conhecimento progressivo, cada vez mais racional, cada vez mais avançado do ponto de vista do desenvolvimento humano. Portanto, é possível elaborar e implantar projetos efetivos e duradouros que tenham como base o agir coletivo, respeitoso, que preserva comemora as pessoas. E essa ação já contém em si mesma a possibilidade de superação da violência.
RC: E como foi constituída a fundamentação teórica dessa prática?
EEM: De fato foi a prática que me sinalizou um caminho a percorrer. Mas, faltava definir de modo claro e preciso uma fundamentação sólida para a minha práxis. Por isto resolvi investir na minha formação acadêmica.  
Fiz o mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais. Escolhi essa área exatamente por que ela abre um campo de possibilidades para pensar os fenômenos sociais de forma ampla e integral. A fundamentação teórica para discutir desafios – como, por exemplo, o da superação da violência – foi encontrada nas ideias do filósofo Jurgen Habermas (a “Teoria da Ação Comunicativa”), cuja base é o entendimento linguístico ou pacto racional entre sujeitos (ou o procedimento racional de aquisição desse acordo) mediado pela linguagem no seu uso comunicativo cotidiano (a fala). O foco principal aqui é basicamente a força das razões apresentadas (o argumento), e, neste sentido, não envolve nem um outro tipo de coerção. O que é estabelecido nessa relação é uma ação intersubjetiva, onde, todas as pessoas envolvidas se reconhecem reciprocamente como sujeitos. Em suma, o filosofo trabalha exatamente com as interações do cotidiano (na práxis comunicativa do cotidiano) de sujeitos que usam a linguagem na perspectiva de se entenderem e de construírem um mundo.
Em resumo, a teoria da ação comunicativa de Habermas é o fundamento teórico da minha prática. As ideias habermasianas ofereceram um subsidio tão radical, pois  o filosofo trabalha  exatamente as interações na práxis comunicativa do cotidiano de sujeitos que usam a linguagem na perspectiva de se entenderem e de construírem um mundo.
A premissa do meu trabalho e dos nossos projetos é essencialmente prática. É nascida no cotidiano, na minha interação com as outras pessoas. A teoria veio como uma resposta para uma pergunta que eu já buscava e que já havia sido posta pela minha prática.

RC: A sua atuação na Faculdade de Medicina se destaca em vários campos. Certamente, os projetos que a senhora coordena têm uma grande visibilidade e importância social. Como ocorreu a gênese desses projetos? E quais foram os desdobramentos desses projetos?

EEM: Não adianta fazer lindos projetos de cima para baixo. Ou é feito de maneira participativa ou então não vai acontecer. Nessa perspectiva, nasceram os projetos “Pirapora Adolescente”, “Meninos do rio”, “Frutos do morro”, “Núcleo de promoção de saúde e paz”. Este núcleo é fruto da história de vários projetos interligados que foram se articulando, somando. Entendendo que quanto mais a gente se agrupava, maior era a nossa capacidade de enfrentar os problemas e atuar do jeito que queriamos com os objetivos que estabelecemos.
Os projetos nasceram da experiência e da participação dos seus próprios integrantes. Por exemplo, no caso da Maria Inês Pereira, ele chegou até nós e disse: “ – eu  não estou representando um projeto. Eu sou uma professora que está começando uma experiência numa escola e quero saber se me cabe aqui.” E eu disse sim. E ela apresentou a sua experiência. Simultaneamente, outras pessoas foram convidadas. E essas pessoas foram trazendo outras. Ficamos um ano, numa espécie de grande seminário, assistindo as apresentações de tantas experiências. E estas foram discutidas, analisadas e sistematizadas. E desta sistematização nasceu uma primeira matriz curricular que a universidade aprovou como um curso de aperfeiçoamento. Deste curso de aperfeiçoamento com aquela experiência nós formamos três turmas.

RC: Para os projetos desenvolvidos, qual é a importância de ter uma equipe formada por pessoas com formação e experiência de vida tão ampla e diversificada?

EEM: Nós nos beneficiamos com o conhecimento que cada um dos professores trouxe. Pois, foi possível transformar todos esses saberes pulverizados em saberes interelacionados e que dialogam com outros e com a própria realidade na qual estamos inseridos. Gerando um saber coletivo e que por sua vez gerou também uma matriz curricular de um curso de pós-graduação latu senso da universidade federal.

RC: O que a senhora sentiu quando o curso de pós-graduação latu senso nascido de todo esse processo foi aprovado pela Universidade Federal de Minas Gerais?


EEM: Quando esse curso foi aprovado, eu me sentia a pessoa mais feliz que você possa imaginar. Porque a universidade que tem o papel de gerar as matrizes do conhecimento, as formas de transmissão do ensino reconheceu algo que nasceu da experiência das pessoas na sua vida, nos seus lugares de trabalho, nas suas cidades, nos seus bairros.  Isto é muito simbólico no sentido de que é possível trabalhar nessa perspectiva participativa. Para o mestrado profissional foi um pulo. Hoje temos muitos projetos (alguns com alcance nacional e de grande porte) e sessenta mestrandos. Tudo e todos nascidos da convicção de que se a gente unificar, somos capazes de vencer atritos, conflitos e vaidades egoístas e individualistas. 

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