Texto da da Revista Pedagógica
do Instituto de Educação de Minas Gerais
Ano
2 \ Número 2\ maio 2013 \ Belo Horizonte – MG
Entrevista
Elza
Machado de Melo destaca-se por uma trajetória profissional relevante para a
sociedade e uma formação identitária coerente como pesquisadora, professora e
cidadã. Professora do Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas
Gerais, coordenadora do Núcleo de Promoção de Saúde e Paz/DMPS/FM/UFMG e da
Rede Saúde e Paz, criadora e coordenadora do Mestrado Profissional de Promoção
de Saúde e Prevenção da Violência (FM/UFMG). É líder do Grupo de Estudos sobre
Saúde e Violência. Dentre os seus últimos trabalhos, destaca-se o “Projeto de Atenção Integral à Saúde da Mulher em Situação
de Violência” e o seminário “Para elas: por
elas, por eles, por nós”.
Nessa entrevista, realizada por Ronaldo Campos e Maria Inês
Pereira, a professora da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas
Gerais, Elza Machado de Melo destaca a importância de projetos que unem teoria
e prática, que buscam uma abordagem integral e que respeitem a diversidade
sociocultural. Além de demonstrar a importância do trabalho em rede, que envolve vários atores sociais.
RC: Inicialmente, gostaria que a senhora contasse
um pouco como foi o início da sua trajetória acadêmica-profissional.
EMM:
Sou professora da Faculdade de Medicina e iniciei a minha trajetória
acadêmico-profissional um ano depois de formada como professora no internato
rural. São trinta anos de muito trabalho, onde muita coisa aconteceu. As minhas
escolhas me conduziram ao lugar onde estou agora e tenho muito orgulho do meu
trabalho como médica, da minha formação acadêmica (mestrado e doutorado) e dos
projetos e pesquisas que coordeno aqui.
No
começo, encontrei muitas dificuldades para desenvolver projetos e programar
ações. Eu era uma médica clínica que trabalhava com o orgânico e com questões
próprias da saúde e da doença. Era uma jovem recém-formada de vinte e poucos
anos que contava apenas com a ajuda de alguns alunos do curso de medicina e
tinha que resolver o dilema de trazer algum nível de desenvolvimento para a
saúde de uma determinada cidade do interior do nosso país.
A
única certeza era a impossibilidade de trabalhar os problemas da área de
medicina preventiva e social como se fossem autônomos em relação ao contexto
social, político e ideológico do país e do mundo. Era preciso trabalhar com a
sociedade como um todo, com a população inteira. Nesse momento, essa tarefa
parecia impossível e durante muito tempo me senti impotente diante da grande
complexidade da realidade. Apesar de tudo isso, tinha a convicção de era
possível levar o conhecimento que foi adquirido aqui na universidade para
regiões carentes do nosso estado. E assim iniciávamos os projetos.
RC: No inicio, quais foram as dificuldades para
implementar projetos e ações? E como esse impasses foram resolvidos?
EMM:
No Brasil, em grande parte das vezes, não há uma continuidade
político-administrativa. O que é começado em um mandato pode ser interrompido
imediatamente no mandato seguinte. E, assim, durante um bom tempo, começávamos
um projeto e logo em seguida “ele se desmanchava”. Para em seguida começar
novamente outro projeto que por sua vez também poderia ser “desmanchado”. E
nesse começar e recomeçar quase que contínuo, compreendi que era preciso fazer
algo imediatamente.
Percebi
que era preciso encontrar mecanismos que não deixasse e que não permitissem que
os progressos obtidos pelos nossos projetos fossem desperdiçados sempre que
ocorresse a substituição do partido político dominante, a posse de um novo
prefeito, a mudança do secretário de saúde do município ou a substituição dos
profissionais da área de saúde. Era preciso criar alguma base, uma raiz, um
vinculo, uma durabilidade para aqueles projetos.
RC: Que elemento é esse?
EMM:
Esse elemento pode ser sintetizado da seguinte forma: qualquer projeto só pode
ter durabilidade se for um projeto que pertença a todos os sujeitos envolvidos
nele. Por isto é tão importante estabelecer parcerias, onde, os participantes
são sujeitos reconhecidos e portadores de competências, de vontades e, assim,
capazes de construir um mundo, de manter viva a possibilidade de um
conhecimento progressivo, cada vez mais racional, cada vez mais avançado do
ponto de vista do desenvolvimento humano. Portanto, é possível elaborar e
implantar projetos efetivos e duradouros que tenham como base o agir coletivo,
respeitoso, que preserva comemora as pessoas. E essa ação já contém em si mesma
a possibilidade de superação da violência.
RC: E como foi constituída a fundamentação teórica
dessa prática?
EEM:
De fato foi a prática que me sinalizou um caminho a percorrer. Mas, faltava
definir de modo claro e preciso uma fundamentação sólida para a minha práxis. Por isto resolvi investir na
minha formação acadêmica.
Fiz
o mestrado em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Escolhi essa área exatamente por que ela abre um campo de possibilidades para
pensar os fenômenos sociais de forma ampla e integral. A fundamentação teórica
para discutir desafios – como, por exemplo, o da superação da violência – foi
encontrada nas ideias do filósofo Jurgen Habermas (a “Teoria da Ação Comunicativa”), cuja base é
o entendimento linguístico ou pacto racional entre sujeitos (ou o procedimento
racional de aquisição desse acordo) mediado pela linguagem no seu uso
comunicativo cotidiano (a fala). O foco principal aqui é basicamente a força
das razões apresentadas (o argumento), e, neste sentido, não envolve nem um
outro tipo de coerção. O que é estabelecido nessa relação é uma ação
intersubjetiva, onde, todas as pessoas envolvidas se reconhecem reciprocamente
como sujeitos. Em suma, o filosofo trabalha exatamente com as
interações do cotidiano (na práxis comunicativa do cotidiano) de sujeitos que
usam a linguagem na perspectiva de se entenderem e de construírem um mundo.
Em
resumo, a
teoria da ação comunicativa de Habermas é o fundamento teórico da minha
prática. As ideias habermasianas ofereceram um subsidio tão radical, pois o filosofo trabalha exatamente as interações na práxis
comunicativa do cotidiano de sujeitos que usam a linguagem na perspectiva de se
entenderem e de construírem um mundo.
A
premissa do meu trabalho e dos nossos projetos é essencialmente prática. É
nascida no cotidiano, na minha interação com as outras pessoas. A teoria veio
como uma resposta para uma pergunta que eu já buscava e que já havia sido posta
pela minha prática.
RC: A sua atuação na Faculdade de Medicina se
destaca em vários campos. Certamente, os projetos que a senhora coordena têm
uma grande visibilidade e importância social. Como ocorreu a gênese desses
projetos? E quais foram os desdobramentos desses projetos?
EEM:
Não adianta fazer lindos projetos de cima para baixo. Ou é feito de maneira
participativa ou então não vai acontecer. Nessa perspectiva, nasceram os
projetos “Pirapora Adolescente”, “Meninos do rio”, “Frutos do morro”, “Núcleo
de promoção de saúde e paz”. Este núcleo é fruto da história de vários projetos
interligados que foram se articulando, somando. Entendendo que quanto mais a
gente se agrupava, maior era a nossa capacidade de enfrentar os problemas e
atuar do jeito que queriamos com os objetivos que estabelecemos.
Os
projetos nasceram da experiência e da participação dos seus próprios
integrantes. Por exemplo, no caso da Maria Inês Pereira, ele chegou até nós e
disse: “ – eu não estou representando um
projeto. Eu sou uma professora que está começando uma experiência numa escola e
quero saber se me cabe aqui.” E eu disse sim. E ela apresentou a sua experiência.
Simultaneamente, outras pessoas foram convidadas. E essas pessoas foram
trazendo outras. Ficamos um ano, numa espécie de grande seminário, assistindo
as apresentações de tantas experiências. E estas foram discutidas, analisadas e
sistematizadas. E desta sistematização nasceu uma primeira matriz curricular
que a universidade aprovou como um curso de aperfeiçoamento. Deste curso de
aperfeiçoamento com aquela experiência nós formamos três turmas.
RC: Para os projetos desenvolvidos, qual é a importância
de ter uma equipe formada por pessoas com formação e experiência de vida tão
ampla e diversificada?
EEM:
Nós nos beneficiamos com o conhecimento que cada um dos professores trouxe.
Pois, foi possível transformar todos esses saberes pulverizados em saberes
interelacionados e que dialogam com outros e com a própria realidade na qual
estamos inseridos. Gerando um saber coletivo e que por sua vez gerou também uma
matriz curricular de um curso de pós-graduação latu senso da universidade
federal.
RC: O que a senhora sentiu quando o curso de
pós-graduação latu senso nascido de todo esse processo foi aprovado pela
Universidade Federal de Minas Gerais?
EEM:
Quando esse curso foi aprovado, eu me sentia a pessoa mais feliz que você possa
imaginar. Porque a universidade que tem o papel de gerar as matrizes do
conhecimento, as formas de transmissão do ensino reconheceu algo que nasceu da
experiência das pessoas na sua vida, nos seus lugares de trabalho, nas suas
cidades, nos seus bairros. Isto é muito
simbólico no sentido de que é possível trabalhar nessa perspectiva
participativa. Para o mestrado profissional foi um pulo. Hoje temos muitos
projetos (alguns com alcance nacional e de grande porte) e sessenta mestrandos.
Tudo e todos nascidos da convicção de que se a gente unificar, somos capazes de
vencer atritos, conflitos e vaidades egoístas e individualistas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário