quarta-feira, 16 de novembro de 2011

A moderna antropologia de uma discreta feminista




A moderna antropologia de uma discreta feminista Livro reúne textos
acadêmicos de Ruth Cardoso, que começou sua carreira nos anos 1950 com um
estudo pioneiro sobre imigração japonesa

12 de novembro de 2011 | 6h 00
Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S. Paulo

Para definir a modernidade da antropóloga e professora paulista Ruth
Cardoso (1930-2008), casada com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso
por 55 anos, sua aluna Teresa Pires do Rio Caldeira, hoje lecionando na
Universidade de Berkeley, EUA, recorre a uma frase do filósofo francês
Michel Foucault (1926-1984): ela, como todos os modernos, sentia compulsão
por se inventar. Talvez por isso, poucos tenham conseguido acompanhar o
ritmo camaleônico de alguém que, segundo a organizadora do livro *Ruth
Cardoso - Obra Reunida*, agora lançado pela Editora Mameluco, "criou um
espaço de reflexão e interrogação do presente para forçar limites, procurar
alternativas". Ruth conservou-se assim: foi uma feminista de primeira hora,
incentivadora de outros movimentos sociais emergentes nos anos 1970,
nascidos entre descendentes de escravos, favelados e homossexuais, sem medo
de provocar os conservadores, mesmo quando assumiu - contra sua vontade - a
condição de primeira-dama do Brasil.
[image: Antropóloga. Ruth Cardoso nos anos 1970 - Arquivo Ruth
Cardoso/Fund. IFHC]
Arquivo Ruth Cardoso/Fund. IFHC
Antropóloga. Ruth Cardoso nos anos 1970

Com a chegada do marido à Presidência, ela investiu contra a herança
getulista do assistencialismo (ou clientelismo), ao extinguir a LBA (Legião
Brasileira de Assistência) e inventar o Comunidade Solidária, projeto
conduzido com a ajuda de empresários e apoiado pelo governo para enfrentar
a pobreza e a exclusão social. O fim da LBA provocou polêmica.
Anteriormente, em 1994, quando FHC fazia alianças visando à Presidência,
ela já havia provocado o establishment político ao imprecar contra Antonio
Carlos Magalhães. O episódio é lembrado na biografia da antropóloga, *Ruth
Cardoso - Fragmentos de uma Vida* (Editora Globo) pelo autor Ignácio de
Loyola Brandão, colunista do *Caderno 2*: "Ruth, certo dia, afirmou
publicamente não entender como o marido se aliava a um político como ACM,
figura que trazia todos os vícios do autoritarismo e da prepotência da
ditadura". A explicação: o poder do baiano, capaz de manter a aliança
PFL/PSDB.

Ruth Cardoso, que insistia em se manter autônoma e apartidária, parou de
falar mal de ACM. Em contrapartida, um dos seus primeiros atos como
primeira-dama foi levar para Brasília antigas companheiras da batalha
feminista para fortalecer o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher,
estrutura básica da Secretaria de Políticas para as Mulheres, criada em
2003. Em *A Mulher e a Democracia*, um dos textos selecionados por Teresa
Caldeira para o livro, ela afirma que o processo de democratização da
sociedade passa necessariamente pela ideia da igualdade entre os sexos.

A luta por uma relação simétrica entre homens e mulheres, defendia a
antropóloga, não se dava na porta dos sindicatos nem nas sedes de partidos,
formas rotineiras (e manipuladoras) de fazer política, segundo ela. A
dificuldade para as mulheres penetrarem nesse mundo, escreve, eram enormes
- pelo menos eram quando o texto foi produzido, em 1987 - e por isso o
movimento feminista teria um caráter exemplar entre todos os outros
nascidos depois do histórico Maio de 1968.

"O trabalho intelectual de Ruth não se dissociava da intervenção no debate
político, no qual se engajava como antropóloga", diz Teresa Caldeira no
livro que reúne parte de sua produção acadêmica, mais de meio século de
trabalho intelectual que exigiu da discípula três anos de pesquisas para
selecionar os textos - o mais antigo de 1959 e o mais novo, de 2004. O
primeiro, é, além de tudo, um estudo pioneiro e original sobre a imigração
japonesa no Brasil, tema de sua tese de doutorado (de 1972), publicada em
1995 (pela editora Primus). O volume organizado por Teresa Caldeira reúne,
pela primeira vez, os artigos acadêmicos da antropóloga em forma
cronológica. Como o objetivo era apresentar o pensamento crítico, autoral,
de Ruth Cardoso, ele só não contempla a produção da época em que ela ocupou
o posto de primeira-dama, justifica a organizadora. Foi um período em que,
mais discreta do que nunca, a antropóloga evitou expor publicamente suas
opiniões.

Seis textos do livro são inéditos em português. Alguns foram produzidos um
ou dois anos antes do exílio forçado do casal Cardoso no Chile e na França,
após o golpe militar de 1964. São poucos. A maioria dos textos foi
produzida nas décadas de 1970 e 1980, quando, novamente fixados no Brasil,
a professora recebia encomendas de artigos ou convites para participar de
seminários como As Mulheres e as Políticas Alimentares (França, 1985).
Todos esses escritos ficaram aos cuidados do sociólogo, historiador e
sócio-fundador da Mameluco, Jorge Caldeira, encarregado da missão de
digitalizar todo o acervo da antropóloga, trabalho que começou duas semanas
após sua morte e resultou na descoberta de diversos cadernos que traziam
anotações de suas pesquisas de campo. A irmã do editor organizou esses
textos, separando versões preliminares das finais.

Atenção especial merecem os artigos escritos em parceria com a antropóloga
e cientista política Eunice Ribeiro Durham. Ela escreve um depoimento
emocionado sobre a influência que Ruth exerceu em sua formação, destacando
seus múltiplos interesses culturais (cinema, filosofia, literatura,
história, teatro). "Eu admirava muito e invejava um pouco essa minha
colega", admite Eunice, lembrando como as duas inventavam e adaptaram novos
métodos didáticos trabalhando com estudantes. A amiga Ruth, "que conhecia o
marxismo bem melhor que eu", realizou - com sucesso, segundo Eunice - o
casamento da sociologia com a ciência política. No livro, o mais ambicioso
texto escrito pelas duas analisa o processo acelerado de urbanização (em
1977) e o desequilíbrio provocado pela migração interna no Brasil.

Um ano depois, a antropóloga ousaria ainda mais, avançando no campo
sociológico para desafiar o discurso dominante ao falar da marginalização
da população trabalhadora em países de industrialização tardia. Em
pesquisas de campo junto a trabalhadores favelados de São Paulo, quase
todos migrantes, Ruth descobriu que eles não se viam como marginais -
esses, para os entrevistados, eram os "vagabundos" ou doentes, os
verdadeiros excluídos da sociedade. Recorrendo a Richard Hoggart, que
definiu os trabalhadores de Leeds como crentes na evolução contínua da
sociedade industrial (embora nem tanto na ascensão social), a antropóloga
afirma que os favelados paulistanos acreditavam ainda mais na mobilidade
social que os operários ingleses.

Hoggart, acadêmico inglês cuja participação no julgamento de *O Amante de
Lady Chatterley* foi decisiva para a liberação de obra de D.H. Lawrence,
desconfiava (já em 1957) que a cultura de massas iria impor novos padrões
de comportamento e fortalecer preconceitos sociais. Ruth Cardoso detecta,
de fato, num ensaio sobre consanguinidade e educação em famílias de
favelas, que uma favelada negra havia adotado um bebê branco, dispensando
todo carinho e atenção a ele, enquanto desprezava os dois filhos
biológicos. Contra o discurso politicamente correto, a antropóloga
demonstra que a adoção nas classes urbanas menos favorecidas seguia, para
falar o mínimo, uma lógica um tanto perversa.

"Mais que Lévi-Strauss, cujos seminários frequentou nos anos 1960 e foi uma
influência importante, Hoggart e Paul Willis inspiraram muito essas
análises das entrevistas com residentes em favelas", observa Teresa
Caldeira. "Importava a ela qual a relação que o entrevistado tinha com
essas falas pesquisadas", diz a organizadora, acenando com um segundo
volume para abrigar textos que ficaram de fora no livro. Professora e
orientadora dedicada, segundo ela, Ruth Cardoso chegou a visitar a aluna
diversas vezes em São Miguel Paulista, bairro em que se fixou para escrever
sua tese.

Graças a esse corpo a corpo com a vida nas periferias, os meios de
comunicação de massa e os jovens passam a ser seus "temas estratégicos para
entender as mudanças políticas e culturais" nos anos 1970. "Ela era contra
o conceito de subcultura, queria mostrar como os favelados estavam a par de
tudo e sempre foi uma feminista convicta, fascinada pelo seriado *Malu
Mulher*, de Regina Duarte, justamente por forçar os limites e ter,
surpreendentemente, uma imensa aceitação pública", diz Teresa Caldeira.

Ruth Cardoso
7/7

http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,a-moderna-antropologia-de-uma-discreta-feminista,797569,0.htm

Nenhum comentário:

Postar um comentário