sexta-feira, 17 de abril de 2009

Memória de um sargento de milicias, de Manoel de Antônio de Almeida

Memória de um sargento de milicias, de Manoel de Antônio de Almeida

“Era em um sábado; os bancos estavam cheios de meninos, vestidos quase todos de jaqueta ou robissões de lila, calças de brim escuro e uma enorme pasta de couro ou papelão pendurada por um cordel a tiracolo: chegaram os dois exatamente na hora da tabuada cantada. Era uma espécie de ladainha de números que se usava então nos colégios, cantada todos os sábados em uma espécie de cantochão monótono e insuportável, mas de que os meninos gostavam muito. As vozes dos meninos, juntas ao canto dos passarinhos, faziam uma algazarra de doer os ouvidos; o mestre, acostumado àquilo, escutava impassível, com uma enorme palmatória na mão, e o menor erro que algum dos discípulos cometia não lhe escapava no meio de todo o barulho; fazia parar o canto, chamava o infeliz, emendava cantando o erro cometido, e cascava-lhe pelo menos seis puxados bolos. Era o regente da orquestra ensinando a marcar o compasso. O compadre expôs, no meio do ruído, o objeto de sua visita, e apresentou o pequeno ao mestre.
— Tem muito boa memória; soletra já alguma coisa, não lhe há de dar muito trabalho, disse com orgulho.
— E se me quiser dar, tenho aqui o remédio; santa férula! disse o mestre brandindo a palmatória. O compadre sorriu-se, querendo dar a entender que tinha percebido o latim.
— É verdade: faz santos até as feras, disse traduzindo. O mestre sorriu-se da tradução.
— Mas espero que não há de ser necessária, acrescentou o compadre. O menino percebeu o que tudo isto queria dizer, e mostrou não gostar muito.
— Segunda-feira cá vem, e peço-lhe que não o poupe, disse por fim o compadre despedindo-se. Procurou pelo menino e já o viu na porta da rua prestes a sair, pois que ali não se julgava muito bem.
Então, menino, sai sem tomar a bênção do mestre?...O menino voltou constrangido, tomou de longe a bênção, e saíram então.
Na segunda-feira voltou o menino armado com a sua competente pasta a tiracolo, a sua lousa de escrever e o seu tinteiro de chifre; o padrinho o acompanhou até a porta. Logo nesse dia portou-se de tal maneira que o mestre não se pôde dispensar de lhe dar quatro bolos, o que lhe fez perder toda a folia com que entrara: declarou desde esse instante guerra viva à escola. Ao meio-dia veio o padrinho buscá-lo, e a primeira notícia que ele lhe deu foi que não voltaria no dia seguinte, nem mesmo aquela tarde.
— Mas você não sabe que é preciso aprender?...”

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