quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Crônica: O Equilibrismo das Calçadas e o Mistério do Elevador (Texto de Ronaldo Campos)


 

Crônica: O Equilibrismo das Calçadas e o Mistério do Elevador

No Brasil, a desigualdade social é como o Pão de Açúcar: todo mundo sabe que está lá, é cartão-postal da nossa desorganização e, dependendo de onde você olha, a vista é de tirar o fôlego — ou a esperança. Desde o ano de 2005, a ONU já nos carimbava como a 8ª nação mais desigual do mundo. Mas o brasileiro, esse herói de pés inchados, descobre desde a mais tenra infância que a distância entre o palácio e o barraco não se mede apenas em cifras no banco, mas em pontos de ônibus e degraus de calçada.

O Estigma e a "Invenção" do Pneu

Goffman, aquele sociólogo que olhava para a gente como quem olha para um microscópio, falava do estigma. Durante séculos, a sociedade tratou quem tem uma deficiência como se fosse um rascunho mal acabado. "Deficiente", diziam, como se faltasse uma peça no motor. Hoje, tentamos a elegância do termo "portador de necessidades especiais", mas a verdade é que no nosso querido Brasil a necessidade mais especial de todas — o direito de ir à padaria sem o risco de vida — continua sendo um artigo de luxo.

O urbanismo brasileiro parece ter sido projetado por um inimigo da gravidade. Nossas calçadas são verdadeiras cordas bambas: estreitas, esburacadas, interrompidas por lixeiras solitárias, telefones públicos que ninguém usa e carros que decidiram que o passeio é, na verdade, um estacionamento grátis. Para quem usa cadeira de rodas (ou tem uma visão limitada ou ainda não enxerga nada), a região da Savassi ou o Centro de Beagá deixam de ser bairros e viram provas de rali.

O Direito de Ir, Vir e Ficar Parado

A Constituição de 1988, nossa "Constituição Cidadã", garantiu na letra da lei que o transporte é para todos os brasileiros um serviço essencial. Belo Horizonte, nossa querida capital, quando quis  fazer bonito para a Copa de 2014, saiu rasgando avenidas e prometendo o BRT. Muita coisa ficou só no papel, outras só mesmo na intenção e algumas nem nos nossos sonhos!  Isso sem falar naqueles viadutos que literalmente foram parar no chão! 

A pergunta que ficou no ar, como depois de tanta a poeira das obras, de tanta coisa que foi prometida e pouca coisa construída efetivamente, por que gastamos tanto em mobilidade para a copa do mundo se ainda não foram feitas nem as  rampas para o cidadão que precisa ir ao Sara Kubitschek fazer fisioterapia?

Porque a lei é linda, escrita em papel timbrado e com palavras de vulto. Temos a Lei do Passe Livre, temos decretos que exigem rampas com 12% de inclinação — mas, na prática, a teoria é outra. O ônibus chega, o motorista suspira e o elevador hidráulico, esse grande místico da mecânica mineira, decide que hoje não quer trabalhar.

O Homem não existe para a Lei

O grande pensador Karl Marx, num raro momento em que não estava mudando o mundo, lembrou que a lei existe para o homem, e não o contrário. Qualquer mulher aqui de Belo Horizonte, cidadã, dona de casa e trabalhadora na escala seis por um, tem a plena certeza que não é um fardo! Ela, como todos nós, é um cidadão que deveria ter igualdade de direitos e de oportunidades. Contudo, em inúmeros os casos, não tem nem garantido o direito de ir e vir garantido plenamente.

 A mobilidade, para todos os cidadãos brasileiros , não pode ser uma mera uma planilha de transporte público. Deve ser  autonomia no seu sentido mais amplo. A mobilidade deve ser considerada a capacidade de ser sujeito político, de trabalhar e de tomar um café no centro sem precisar de um guindaste ou da caridade alheia. Mas, enquanto a "sociedade de consumo" briga por vaga de estacionamento e ocupa as calçadas com mesinhas de bar, o portador de necessidades especiais faz o seu equilibrismo diário. A inclusão não é um favor que o Estado faz; é o reconhecimento de que a cidade é um organismo vivo, e que nenhum membro pode ser deixado sem circulação.

Considerações de um Cronista Cansado

No fim das contas, a mobilidade urbana inclusiva é o começo de uma sociedade humana. Menos "uai" de espanto com o elevador quebrado e mais respeito ao traçado da rampa. É importante que Belo Horizonte e o Brasil deixem de ser um labirinto de obstáculos e passem a ser, finalmente, uma casa aberta. Afinal, a cidadania, assim como o horizonte mineiro, deveria ser para todos.


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