Muita
gente, é verdade, já me fez a inevitável pergunta: “Mas, Ronaldo, como é que
você foi parar justamente lá, no Instituto de Educação de Minas Gerais?”. A
resposta é daquelas que a gente guarda para as grandes ocasiões, ou, no meu
caso, para quando a vida resolve dar uma guinada cívica: “Ah, meu caro, foi
pelo primeiro concurso depois da Constituição Cidadã!”
Uma
graça, não? A lei maior, em sua sabedoria (e com aquela pitada de ironia que só
a burocracia entende), dizia que para se meter no serviço público era preciso o
tal concurso. Uma ideia republicana, daquelas que a gente aplaude, mas que, vá
lá, ainda não se tornou um evangelho em todos os cantos deste vasto e desigual
país.
O tal
concurso, que era uma decorrência de uma longa e justa greve de professores –
gente que tinha a mania de querer um plano de cargos e carreira, vejam só que
ousadia! –, aconteceu no finzinho de 1991. A homologação, aquele carimbo
oficial que diz: “é para valer”, veio no ano seguinte. Validade de dois anos,
prorrogável por mais dois. Quatro anos é uma eternidade na vida de um
desempregado. E eu, veja bem, já tinha quase posto a história no baú dos esquecimentos.
Mas o
acaso, ah, o acaso é um dramaturgo de primeira.
Quando eu
já contava os tostões e amargurava a saída da escola particular (um
“depauperamento” financeiro, para usar um termo de peso), a salvação me veio
pelo correio, ou melhor, pelo “Minas Gerais”, o jornal oficial. E não foi por
mim, que tinha a disciplina de um esquilo sonolento para essas coisas, mas pela
minha tia Leninha.
Tia
Leninha, nobre senhora de olhar atento, trabalhava num escritório de advocacia
e tinha por função matinal o penoso ofício de esquadrinhar o Diário Oficial,
separando o trigo do joio para a firma. E foi nesse ritual sagrado que, num
certo dia, deu de cara com um nome familiar: Ronaldo Campos, aprovado e
convocado.
“Ronaldo,
você fez esse concurso?”, perguntou ela, ao telefone, com aquela voz de quem
descobre um tesouro perdido.
Que
sorte, santo Deus! Faltavam, pasme, quinze dias para o prazo final caducar.
Quinze dias para exames médicos, papeladas e a posse. Foi uma correria maluca,
de doer. Mas, claro, como nas comédias de situação, consegui a proeza. Estava
salvo, ou pelo menos empregado.
A Escolha
e a Coragem de Celina
O
problema, sempre há um, era o Mestrado. Estava eu, todo aplicado, na UFMG, no campus
da Pampulha. Precisava de uma escola que me permitisse conciliar as aulas e
que, na falta de um carro, fosse minimamente alcançável de ônibus.
Na
Secretaria, encontrei a funcionária Perpétua – um nome com vocação para a
eternidade e o serviço público. Perguntei qual das escolas da lista ficava mais
perto da Pampulha. A Perpétua foi direta, sem floreios: “É o Ari da Franca, no
Santa Mônica.”
Fui. E a
escola me surpreendeu: prédio bonito, gente simpática e a diretora, Verinha,
uma santa. A Verinha, percebendo meu cargo "picado" (aulas de manhã,
de tarde e de noite, por ter chegado com o bonde andando), fez a mágica:
concentrou tudo em apenas dois dias. Eu chegava às 7h30 e saía depois das
22h45. Uma jornada de titã, mas libertadora!
Aquela
experiência foi incrível, mas, como tudo que é bom e tem horário picado, durou
pouco. No ano seguinte, era eu um excedente. De novo, a busca por uma escola
para eu chamar de minha.
Usei a
mesma lógica cartesiana da primeira vez: a escola onde o ônibus 4501 me levasse
da porta de casa à porta da sala de aula, e que ficasse a meio caminho da UFMG.
O destino me levou à Escola Estadual Guia Lopes. Fiquei por lá quase cinco
anos. Não tive um problema grave sequer, o que, no magistério, já é uma
medalha.
Mas o
Mestrado terminou, e a gente, quando termina algo, quer voar, quer projetos
maiores. A distância do Guia Lopes já me impedia de tramitar minhas ambições.
Pensei: “Vou pedir exoneração.”
Foi aí
que a professora de arte, Celina, com sua visão de águia e seu senso de
destino, interveio.
Ela foi
até a secretária, pegou o papel de transferência e preencheu. Olhou para mim,
séria, e deu a ordem, sem me dar chance de réplica:
“O seu
lugar é no Instituto de Educação! Tenho uma grande amiga lá, a Maria Inez. Você
vai se adaptar rapidamente.”
Eu, que
sou mais de obedecer do que de ter convicção em certas horas, apenas assinei.
A Sala de
Professores e a Geografia do Poder
Em janeiro
de 2002, a diretora Graça me ligou, dizendo que minha remoção havia saído no
“Minas Gerais”. A felicidade me inundou, daquelas que a gente se sente um
privilegiado. Antes de ir para o Instituto, passei no Guia Lopes para agradecer
e me despedir dos colegas.
Cheguei
ao IEMG pontualmente às 13 horas. Fui conduzido à Direção Geral. Naquele tempo,
não havia eleição, o diretor era indicação direta do Governador, o que criava
um certo ar de corte. A diretora era Norma Lelis, uma figura distante e de
acesso difícil, para quem era preciso marcar hora para resolver qualquer
assunto. Não era, digamos, uma gestão de portas abertas.
Depois da
formalidade, fui encaminhado para a sala dos professores. No caminho, passei
pelas salas da orientação e da supervisão. Na primeira, notei uma fotografia de
Dona Aspásia. Detalhes que a gente guarda.
A sala
dos professores, ah, a sala dos professores! Ampla, retangular, com janelões
dando para pátios internos. Os armários de aço, onde se escondiam pertences e
segredos. E, ao centro, uma longa e solene mesa de madeira, de mais de oito
metros. Nas laterais, mesas menores, circulares, para oito ou dez almas. E,
junto à porta, uma fileira de poltronas individuais de couro vermelho.
Entrei e,
confesso, fiquei paralisado. Ninguém me cumprimentou. Ninguém me apresentou.
Era como se eu fosse um fantasma. Uma colega, de História, recém-chegada
também, me chamou para as poltronas vermelhas. Sentamos, falando baixinho,
observando a fauna.
E foi ali
que percebi, com a experiência adquirida em outros colégios, a geografia
daquela sala, que era a geografia do poder: na mesa maior, sentavam-se os
professores mais antigos, os notáveis, os senhores do saber. Nas mesas
circulares, os grupos de amigos, com alguma importância, mas sem o brilho dos
primeiros.
Eu já
estava quase resignado ao ostracismo da poltrona vermelha, quando meus olhos
cruzaram com os de Gisele, uma professora de História que havia conhecido no
Ari da Franca. Acenei. Fui na direção dela. Em poucos minutos, já tinha
cumprimentado metade da sala, contado causos, rido à toa e até dado palpites na
reunião de início de turno. Salvo pelo reencontro.
A única
tristeza, e disso a gente não foge quando é o último a chegar, foi entender meu
horário. Fiquei com o último cargo de História, sem direito a escolha. As aulas
seriam intercaladas: Quinto ano, do "L" ao "N", no prédio
da Pernambuco, e Sexto ano, também do "L" ao "N", no prédio
da Paraíba.
Um dia
terei que contar sobre essa dança entre Pernambuco e Paraíba. Mas, para hoje,
basta saber que o acaso, a tia Leninha e a intuição de Celina me puseram,
enfim, no lendário Instituto de Educação.
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