Tenho mais de trinta anos de docência, sendo mais de vinte deles dedicados ao venerável Instituto de Educação, que, a esta altura, me conhece melhor do que eu mesmo. Durante anos, meu palco foi o casarão rosado, nas Cerimônias de conclusão do Ensino Médio, sempre apresentei de modo impecável de terno e gravata, como Mestre de Cerimônia. Era um trabalho em conjunto com a supervisora Ângela Machado Teles. Por ocupar este posto solene, meu nome era vetado para ser padrinho de turma. Eu era o guardião da formalidade, não o cúmplice da festa.
Mas, como tudo na vida, a Era de Ouro acaba. Com a saída
do diretor Orivaldo Diogo, a nova gestão terceirizou as solenidades. Meu veto
sumiu, mas minha fama permaneceu. O hábito, descobri, é mais forte que o
regulamento. Eu era o professor rigoroso, o "bravo". Meu nome não era
sequer cogitado nas votações.
E eu, acostumado a comandar plateias, não ligava.
Até que, no ano passado, aconteceu o inesperado. Fui
ignorado, como sempre, para ser padrinho do Interclass (a gincana interna) de
todas as turmas. Mas o professor André, o de Filosofia, foi o escolhido pela
turma 105 da tarde. André, no entanto, tinha o azar de lecionar noutra escola
pela manhã, e a diretora de lá, inflexível como a própria lógica, exigiu sua
presença.
André me pediu para substituí-lo. E lá fui eu. Eu, o
Guardião da Tradição, sem o terno e a gravata, subitamente atirado na arena dos
jogos de salão. Participei de um tal "Tem ou Não Tem" e de um
infernal "Não Erre a Letra".
Tenho que confessar: me saí muito bem. Os alunos,
visivelmente chocados, passaram a me ver não como um busto de mármore, mas como
um ser humano capaz de distinguir a letra 'O' da 'A'.
Foi aí que me dei conta: por que eles não me escolhiam?
Não era mais por um veto antigo, era o hábito. Meu nome estava, há anos, no
limbo da educação: nem proibido, nem lembrado.
A Intimação Pós-Napoleônica
Este ano, o inesperado fez jus ao nome. Fui escolhido.
Não perguntaram se eu aceitava. Devem ter raciocinado com a lógica de um
adolescente: "Se ele participou ano passado de forma espontânea, por que
recusaria agora?"
O modo como fiquei sabendo foi o ponto alto de minha
carreira professoral.
Era terça-feira, minha primeira aula era na turma 206.
Cheguei pontualmente. Comecei a aula com os motivos que deram origem as Guerras
Napoleônicas. A sala foi enchendo, pontual, até o limite da tolerância
de dez minutos.
Tudo ia bem. Eu explicava o Bloqueio Continental, quando,
do nada, os alunos começaram a levantar e sair.
Assustei-me. Perguntei. Ninguém respondia. Saíam um a um,
com uma coreografia ensaiada de dispersão. Um para a escada de incêndio, outro
para o elevador, um terceiro para o banheiro. O caos era total. O professor de
trinta anos de docência, que venceu Napoleão, não conseguiu conter uma turma de
Ensino Médio.
Desci as escadas correndo, afoito e com a raiva
burburinhando, direto para a supervisão e vice direção. Contei a tragédia do
esvaziamento. Para minha surpresa, o diretor, calmíssimo, apenas disse que
"iria verificar".
Quando voltei, afoito e vermelho, a cena havia se
invertido: estavam todos sentados, em silêncio sepulcral, como se nunca
tivessem saído dali. Eu não entendi nada.
Olhei para a minha mesa. Havia um pequeno bolo
confeitado. E nele, a mensagem escrita em glacê:
"Professor, você está intimado a ser o nosso
padrinho."
Pedi um minuto. Não para pensar, mas para engolir a
raiva, assimilar o stress e, honestamente, conter a pontinha
de satisfação.
Lógico que aceitei.
A turma 206 era dedicada e talentosa. Mas, eles eram em muitas aulas indisciplinados e bagunceiros. Ficamos em um honroso quarto lugar, perdendo o bronze por apenas oito pontos.
Hoje lembrando daquele
dia, com a fúria da Guerra e a doçura do glacê, eu finalmente troquei a gravata
do Mestre de Cerimônias pelo abraço do padrinho. E essa, meus amigos, é a prova
de que a única coisa mais difícil de se derrotar do que o exército de Napoleão
é um bom e velho hábito escolar.
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