segunda-feira, 6 de outubro de 2025

O Padrinho Intimado e as Guerras de Napoelão





Tenho mais de trinta anos de docência, sendo mais de vinte deles dedicados ao venerável Instituto de Educação, que, a esta altura, me conhece melhor do que eu mesmo. Durante anos, meu palco foi o casarão rosado, nas Cerimônias de conclusão do Ensino Médio, sempre apresentei de modo impecável de terno e gravata, como Mestre de Cerimônia. Era um trabalho em conjunto com a supervisora Ângela Machado Teles. Por ocupar este posto solene, meu nome era vetado para ser padrinho de turma. Eu era o guardião da formalidade, não o cúmplice da festa.

Mas, como tudo na vida, a Era de Ouro acaba. Com a saída do diretor Orivaldo Diogo, a nova gestão terceirizou as solenidades. Meu veto sumiu, mas minha fama permaneceu. O hábito, descobri, é mais forte que o regulamento. Eu era o professor rigoroso, o "bravo". Meu nome não era sequer cogitado nas votações.

E eu, acostumado a comandar plateias, não ligava.

Até que, no ano passado, aconteceu o inesperado. Fui ignorado, como sempre, para ser padrinho do Interclass (a gincana interna) de todas as turmas. Mas o professor André, o de Filosofia, foi o escolhido pela turma 105 da tarde. André, no entanto, tinha o azar de lecionar noutra escola pela manhã, e a diretora de lá, inflexível como a própria lógica, exigiu sua presença.

André me pediu para substituí-lo. E lá fui eu. Eu, o Guardião da Tradição, sem o terno e a gravata, subitamente atirado na arena dos jogos de salão. Participei de um tal "Tem ou Não Tem" e de um infernal "Não Erre a Letra".

Tenho que confessar: me saí muito bem. Os alunos, visivelmente chocados, passaram a me ver não como um busto de mármore, mas como um ser humano capaz de distinguir a letra 'O' da 'A'.

Foi aí que me dei conta: por que eles não me escolhiam? Não era mais por um veto antigo, era o hábito. Meu nome estava, há anos, no limbo da educação: nem proibido, nem lembrado.

A Intimação Pós-Napoleônica

Este ano, o inesperado fez jus ao nome. Fui escolhido. Não perguntaram se eu aceitava. Devem ter raciocinado com a lógica de um adolescente: "Se ele participou ano passado de forma espontânea, por que recusaria agora?"

O modo como fiquei sabendo foi o ponto alto de minha carreira professoral.

Era terça-feira, minha primeira aula era na turma 206. Cheguei pontualmente. Comecei a aula com os motivos que deram origem as Guerras Napoleônicas. A sala foi enchendo, pontual, até o limite da tolerância de dez minutos.

Tudo ia bem. Eu explicava o Bloqueio Continental, quando, do nada, os alunos começaram a levantar e sair.

Assustei-me. Perguntei. Ninguém respondia. Saíam um a um, com uma coreografia ensaiada de dispersão. Um para a escada de incêndio, outro para o elevador, um terceiro para o banheiro. O caos era total. O professor de trinta anos de docência, que venceu Napoleão, não conseguiu conter uma turma de Ensino Médio.

Desci as escadas correndo, afoito e com a raiva burburinhando, direto para a supervisão e vice direção. Contei a tragédia do esvaziamento. Para minha surpresa, o diretor, calmíssimo, apenas disse que "iria verificar".

Quando voltei, afoito e vermelho, a cena havia se invertido: estavam todos sentados, em silêncio sepulcral, como se nunca tivessem saído dali. Eu não entendi nada.

Olhei para a minha mesa. Havia um pequeno bolo confeitado. E nele, a mensagem escrita em glacê:

"Professor, você está intimado a ser o nosso padrinho."

Pedi um minuto. Não para pensar, mas para engolir a raiva, assimilar o stress e, honestamente, conter a pontinha de satisfação.

Lógico que aceitei.

A turma 206  era dedicada e  talentosa. Mas, eles eram em muitas aulas indisciplinados e bagunceiros. Ficamos em um honroso quarto lugar, perdendo o bronze por apenas oito pontos. 

Hoje lembrando daquele dia, com a fúria da Guerra e a doçura do glacê, eu finalmente troquei a gravata do Mestre de Cerimônias pelo abraço do padrinho. E essa, meus amigos, é a prova de que a única coisa mais difícil de se derrotar do que o exército de Napoleão é um bom e velho hábito escolar.


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