Em meus trinta anos de magistério, cheguei a uma única
verdade inegável: cada aluno é único. Por mais que a gente insista em achar que
o João da quinta série de 1992 é a reencarnação do Pedro de 2009, a vida nos
contradiz. Eles são totalmente diferentes, sobretudo nas minúcias onde reside o
temperamento.
Hoje, quero falar de um exemplar raro. Tive esse aluno
por dois anos no Ensino Médio, nas aulas de História, que encaixa nesse contexto. Ele era um tipo meio blasé,
ar desinteressado, sempre escondido entre os colegas, um tanto tímido e até
arredio. Mas cumpria o protocolo escolar com perfeição: boas notas, trabalhos em dia,
caderno impecável. No conjunto da obra, ele era uma máquina de eficiência em
modo silencioso.
A calmaria só foi quebrada quando, em um daqueles sábados
letivos (que são uma prova de fé para o professorado), decidimos lançar um trabalho
interdisciplinar. A ideia era dar um tempo à atmosfera de aulas expositivas e
transformar os alunos em protagonistas – ou, nas palavras menos técnicas da
sala dos professores, fazer com que eles se tornassem protagonistas do processo de ensino-aprendizagem.
No início, a motivação era a de uma segunda-feira morna e cinza. Mas
eles engrenaram. E passaram a querer pensar e fazer só o projeto. Pediam para ensaiar, queria fazer o mascote, cortar papel crepom...
O tema geral desse trabalho interdisciplinar era "Matemática em Todo Lugar".
Minha turma (História) tinha que rastrear os números através dos séculos. Foi o
trivial: o grupo das Pirâmides, o grupo dos Arcos Romanos, a primeira e a segunda guerra. Cartazes, painéis e
maquetes, tudo dentro da normalidade burocrática do Ensino Médio.
Mas em outra sala, a mágica aconteceu. Eles ficaram com
Biologia. E criaram um jogo que transformou o espaço inteiro em um gigantesco tabuleiro-penetrável.
A coisa tinha um ar de instalação de arte contemporânea, quase uma performance da
Lygia Clark. Fiquei perplexo. Fui saber a origem daquela ideia colossal, de
quem era a mente por trás daquela confecção.
Todas as respostas convergiam para o menino tímido de
olhar blasé. Pensei, com a presunção do mestre: "Esse menino vai
longe!"
No ano seguinte, veio o Teste de Fogo: a gincana de
Matemática. Foi nesse período que notei suas faltas. Chamei-o à
responsabilidade, advertindo o perigo da recuperação. Ele me olhou com aquela
calma bovina e garantiu que não haveria problemas.
No sábado da gincana, ele calou a escola inteira. O
menino de olhar blasé surpreendeu a todos com um robô em tamanho natural. Uma
fantasia prateada, construída praticamente sozinho, que parecia ter escapado
diretamente de Perdidos no Espaço. Naquele momento, todos souberam: o mascote
ganharia. Era criativo, diferente, executado com minúcia. E ganhou. O menino
finalmente saiu das sombras, passando a ser visto como o gênio da escola.
No último ano, o Terceirão, a história mudou de rumo. O que era timidez se tornou ousadia. O olhar blasé ganhou um tom inegável de arrogância. E o que antes era feito em silêncio agora era propagado aos quatro ventos, deixando os colegas mortalmente incomodados.
A última gincana colegial se tornou, então, a última
chance de derrotar o garoto. A competição do mascote era o clímax. A sala dele
ficou com a Bahia.
O plano vazou: eles fariam um mascote inspirado no Farol
da Barra, transformando o ícone em um ser animado, no melhor estilo cartoon
de Copa do Mundo. A propaganda era tanta que despertou a fúria criativa das
salas adversárias. Nasceu um Boi Bumbá do Pará com detalhes inacreditáveis, e
mascotes como o Lobo Guará e a Ararinha Azul, elaborados com uma perfeição
quase cirúrgica.
No dia da apresentação, a competição foi épica. O Pará
trouxe uma paródia musical que sincronizava o carimbó e Joelma. São Paulo
misturou Ney Matogrosso, Rita Lee e o Thriller de Michael Jackson para
mostrar o lado gótico da Pauliceia. A plateia elegeu seus campeões.
Mas o menino, que planejava tudo em silêncio,
esperou a hora de defender seu projeto. E ali, com a calma de um velho
advogado, ele deu seu show final.
Mostrou os croquis, os materiais e, por fim, a argumentação.
Ele reconheceu o valor dos outros, mas pontuou: "Eles são cópias. Cópias
perfeitas, mas cópias de algo que já existe. O meu Farol foi criado a partir da
ideia do Farol. É único."
Na segunda-feira, quando o resultado parcial foi
anunciado, a Bahia ganhou na categoria Mascote. Não por ser o mais bonito, nem
o mais fiel à realidade. Mas por ser o mais criativo.
Naquele momento, todos perceberam: o garoto não só
produzia coisas brilhantes, mas, nos anos de Ensino Médio, havia aprimorado a
arte de vender as suas ideias. Ele ensinou a todos que o talento cru pode
surpreender, mas o argumento bem formulado, o tom certo da palavra, é o que
garante a vitória final. E a lição é a mais dura de todas: a criatividade pode
te colocar na frente, mas a retórica é que faz você receber o troféu.


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