segunda-feira, 6 de outubro de 2025

O Gênio Blasé e a Arte de Vender o Farol


Em meus trinta anos de magistério, cheguei a uma única verdade inegável: cada aluno é único. Por mais que a gente insista em achar que o João da quinta série de 1992 é a reencarnação do Pedro de 2009, a vida nos contradiz. Eles são totalmente diferentes, sobretudo nas minúcias onde reside o temperamento.

Hoje, quero falar de um exemplar raro. Tive esse aluno por dois anos no Ensino Médio, nas aulas de História, que encaixa nesse contexto. Ele era um tipo meio blasé, ar desinteressado, sempre escondido entre os colegas, um tanto tímido e até arredio. Mas cumpria o protocolo escolar com perfeição: boas notas, trabalhos em dia, caderno impecável. No conjunto da obra, ele era uma máquina de eficiência em modo silencioso.

A calmaria só foi quebrada quando, em um daqueles sábados letivos (que são uma prova de fé para o professorado), decidimos lançar um trabalho interdisciplinar. A ideia era dar um tempo à atmosfera de aulas expositivas e transformar os alunos em protagonistas – ou, nas palavras menos técnicas da sala dos professores, fazer com que eles se tornassem protagonistas do processo de ensino-aprendizagem.

No início, a motivação era a de uma segunda-feira morna e cinza. Mas eles engrenaram. E passaram a querer pensar e fazer só o projeto. Pediam para ensaiar, queria fazer o mascote, cortar papel crepom...

O tema geral desse trabalho interdisciplinar era "Matemática em Todo Lugar". Minha turma (História) tinha que rastrear os números através dos séculos. Foi o trivial: o grupo das Pirâmides, o grupo dos Arcos Romanos, a primeira e a segunda guerra. Cartazes, painéis e maquetes, tudo dentro da normalidade burocrática do Ensino Médio.

Mas em outra sala, a mágica aconteceu. Eles ficaram com Biologia. E criaram um jogo que transformou o espaço inteiro em um gigantesco tabuleiro-penetrável. A coisa tinha um ar de instalação de arte contemporânea, quase uma performance da Lygia Clark. Fiquei perplexo. Fui saber a origem daquela ideia colossal, de quem era a mente por trás daquela confecção.

Todas as respostas convergiam para o menino tímido de olhar blasé. Pensei, com a presunção do mestre: "Esse menino vai longe!"

No ano seguinte, veio o Teste de Fogo: a gincana de Matemática. Foi nesse período que notei suas faltas. Chamei-o à responsabilidade, advertindo o perigo da recuperação. Ele me olhou com aquela calma bovina e garantiu que não haveria problemas.

No sábado da gincana, ele calou a escola inteira. O menino de olhar blasé surpreendeu a todos com um robô em tamanho natural. Uma fantasia prateada, construída praticamente sozinho, que parecia ter escapado diretamente de Perdidos no Espaço. Naquele momento, todos souberam: o mascote ganharia. Era criativo, diferente, executado com minúcia. E ganhou. O menino finalmente saiu das sombras, passando a ser visto como o gênio da escola.

No último ano, o Terceirão, a história mudou de rumo. O que era timidez se tornou ousadia. O olhar blasé ganhou um tom inegável de arrogância. E o que antes era feito em silêncio agora era propagado aos quatro ventos, deixando os colegas mortalmente incomodados.

A última gincana colegial se tornou, então, a última chance de derrotar o garoto. A competição do mascote era o clímax. A sala dele ficou com a Bahia.

O plano vazou: eles fariam um mascote inspirado no Farol da Barra, transformando o ícone em um ser animado, no melhor estilo cartoon de Copa do Mundo. A propaganda era tanta que despertou a fúria criativa das salas adversárias. Nasceu um Boi Bumbá do Pará com detalhes inacreditáveis, e mascotes como o Lobo Guará e a Ararinha Azul, elaborados com uma perfeição quase cirúrgica.

No dia da apresentação, a competição foi épica. O Pará trouxe uma paródia musical que sincronizava o carimbó e Joelma. São Paulo misturou Ney Matogrosso, Rita Lee e o Thriller de Michael Jackson para mostrar o lado gótico da Pauliceia. A plateia elegeu seus campeões.

Mas o menino, que planejava tudo em silêncio, esperou a hora de defender seu projeto. E ali, com a calma de um velho advogado, ele deu seu show final.

Mostrou os croquis, os materiais e, por fim, a argumentação. Ele reconheceu o valor dos outros, mas pontuou: "Eles são cópias. Cópias perfeitas, mas cópias de algo que já existe. O meu Farol foi criado a partir da ideia do Farol. É único."

Na segunda-feira, quando o resultado parcial foi anunciado, a Bahia ganhou na categoria Mascote. Não por ser o mais bonito, nem o mais fiel à realidade. Mas por ser o mais criativo.

Naquele momento, todos perceberam: o garoto não só produzia coisas brilhantes, mas, nos anos de Ensino Médio, havia aprimorado a arte de vender as suas ideias. Ele ensinou a todos que o talento cru pode surpreender, mas o argumento bem formulado, o tom certo da palavra, é o que garante a vitória final. E a lição é a mais dura de todas: a criatividade pode te colocar na frente, mas a retórica é que faz você receber o troféu.




 

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