quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Olhar que Desalegra e o Olhar que Vê (texto: Ronaldo Campos)

 

 Olhar que Desalegra e o Olhar que Vê




Sempre me intrigou essa mania que temos de olhar sem ver, ou seja, de não conseguir perceber que há outras pessoas além de nós (além dos nossos). Passamos pelas calçadas de passos apressados, desviando de volumes estendidos no chão como se fossem meros acidentes geográficos do concreto. Mas a Antropologia — essa ciência que é, no fundo, uma forma de paciência — nos ensina que o homem é um bicho vasto, infinito em suas dobras, e que não existe "o outro" sem que haja, antes, um espelho.

O antropólogo não é um turista do exótico. Ele é alguém que se despe de si mesmo para vestir a pele do mundo. Não quer mudar ninguém; quer, antes, entender por que o laço do sapato é dado daquela forma e não de outra. Para ele, a cultura não mora apenas nos museus ou nas óperas, mas no modo de comer, de rezar e, sobretudo, no modo de resistir. Quando esse estudioso se debruça sobre a rua, ele não vê o "viciado" ou o "vagabundo", categorias tão caras ao nosso preconceito de estimação. Ele vê um sobrevivente de naufrágios invisíveis.

A Arte de Estender a Mão (e o Ouvido)

Para quem trabalha com outro, tendo a empatia como base e sem confundir acesso aos direitos com caridade ao desvalido. Provavelmente, o melhor exemplo nesse caso se encontra naquelas pessoas que estão na vanguarda  da assistência social. Eu creio que o assistente social tem a Antropologia como uma das suas mais importantes ciências auxiliares. Por isso, posso afirmar que o pensamento antropológico é muito mais que teoria: é uma caixa de ferramentas para a alma. É ela que ensina que, para entrar no mundo de quem a vida trancou do lado de fora, é preciso pedir licença. Não se invade a subjetividade alheia com protocolos rígidos. É preciso empatia, essa palavra tão gasta, mas que aqui recupera seu brilho original: a capacidade de sentir o frio do outro sob a própria pele.

A rua, para o olhar treinado (do antropólogo e também do assistente social) , deixa de ser apenas o vazio entre dois prédios. Ela se torna um território simbólico, um palco de dramas e pequenas vitórias que a nossa pressa não nos permite aplaudir. Cada homem sentado num papelão carrega um inventário de perdas:

  • A revolta contra um Estado que é madrasta;

  • O cansaço de uma pobreza que mói o espírito;

  • O esfacelamento de famílias que não aguentaram o peso do mundo.


A Invisibilidade como Sentença

Há quem diga que o tráfico ou a prostituição são escolhas. Essas pessoas demonizam aqueles que têm a sua trajetória de vida nas ruas. A Antropologia, com seu olhar de cronista do real, sabe que muitas vezes são apenas as únicas portas abertas quando todas as outras foram fechadas com cadeados de indiferença. O sujeito que se sente incapaz acaba, por fim, acreditando na própria invisibilidade. E nada dói mais do que ser transparente para o semelhante.

Eu sei que o ato de aceitar a cultura do outro não é apenas concordar com a sua dor, mas é também (e sobretudo é) respeitar a sua humanidade para poder, quem sabe, ajudá-lo a se reintegrar na sociedade como um cidadão de fato republicano.

No fim das contas, o que essa ciência antropológica nos sopra ao ouvido é um segredo simples e devastador: todos somos iguais, ou deveríamos ser, sob o manto da lei e do sol. Se pararmos para observar com o tempo necessário — o tempo de um café, de um silêncio compartilhado —, perceberemos que o estigma é uma construção nossa, uma cerca que levantamos para não admitir que aquele homem no chão é, em tudo, rigorosamente igual a nós. Apenas teve menos sorte nos dados que a vida lançou sobre o asfalto.

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