sexta-feira, 17 de abril de 2009





Memória de um sargento de milicias, de Manoel de Antônio de Almeida

Memória de um sargento de milicias, de Manoel de Antônio de Almeida

“Era em um sábado; os bancos estavam cheios de meninos, vestidos quase todos de jaqueta ou robissões de lila, calças de brim escuro e uma enorme pasta de couro ou papelão pendurada por um cordel a tiracolo: chegaram os dois exatamente na hora da tabuada cantada. Era uma espécie de ladainha de números que se usava então nos colégios, cantada todos os sábados em uma espécie de cantochão monótono e insuportável, mas de que os meninos gostavam muito. As vozes dos meninos, juntas ao canto dos passarinhos, faziam uma algazarra de doer os ouvidos; o mestre, acostumado àquilo, escutava impassível, com uma enorme palmatória na mão, e o menor erro que algum dos discípulos cometia não lhe escapava no meio de todo o barulho; fazia parar o canto, chamava o infeliz, emendava cantando o erro cometido, e cascava-lhe pelo menos seis puxados bolos. Era o regente da orquestra ensinando a marcar o compasso. O compadre expôs, no meio do ruído, o objeto de sua visita, e apresentou o pequeno ao mestre.
— Tem muito boa memória; soletra já alguma coisa, não lhe há de dar muito trabalho, disse com orgulho.
— E se me quiser dar, tenho aqui o remédio; santa férula! disse o mestre brandindo a palmatória. O compadre sorriu-se, querendo dar a entender que tinha percebido o latim.
— É verdade: faz santos até as feras, disse traduzindo. O mestre sorriu-se da tradução.
— Mas espero que não há de ser necessária, acrescentou o compadre. O menino percebeu o que tudo isto queria dizer, e mostrou não gostar muito.
— Segunda-feira cá vem, e peço-lhe que não o poupe, disse por fim o compadre despedindo-se. Procurou pelo menino e já o viu na porta da rua prestes a sair, pois que ali não se julgava muito bem.
Então, menino, sai sem tomar a bênção do mestre?...O menino voltou constrangido, tomou de longe a bênção, e saíram então.
Na segunda-feira voltou o menino armado com a sua competente pasta a tiracolo, a sua lousa de escrever e o seu tinteiro de chifre; o padrinho o acompanhou até a porta. Logo nesse dia portou-se de tal maneira que o mestre não se pôde dispensar de lhe dar quatro bolos, o que lhe fez perder toda a folia com que entrara: declarou desde esse instante guerra viva à escola. Ao meio-dia veio o padrinho buscá-lo, e a primeira notícia que ele lhe deu foi que não voltaria no dia seguinte, nem mesmo aquela tarde.
— Mas você não sabe que é preciso aprender?...”

O Ateneu, Raul Pompéia

O ATENEU
Raul Pompéia



“Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta.” Bastante experimentei depois a verdade deste aviso, que me despia, num gesto, das ilusões de criança educada exoticamente na estufa de carinho que é o regime do amor doméstico, diferente do que se encontra fora, tão diferente, que parece o poema dos cuidados maternos um artifício sentimental, com a vantagem única de fazer mais sensível a criatura à impressão rude do primeiro ensinamento, têmpera brusca da vitalidade na influência de um novo clima rigoroso. Lembramo-nos, entretanto, com saudade hipócrita, dos felizes tempos; como se a mesma incerteza de hoje, sob outro aspecto, não nos houvesse perseguido outrora e não viesse de longe a enfiada das decepções que nos ultrajam.
[...]
Eufemismo, os felizes tempos, eufemismo apenas, igual aos outros que nos alimentam, a saudade dos dias que correram como melhores. Bem considerando, a atualidade é a mesma em todas as datas. Feita a compensação dos desejos que variam, das aspirações que se transformam, alentadas perpetuamente do mesmo ardor, sobre a mesma base fantástica de esperanças, a atualidade é uma. Sob a coloração cambiante das horas, um pouco de ouro mais pela manhã, um pouco mais de púrpura ao crepúsculo — a paisagem é a mesma de cada lado beirando a estrada da vida.
Eu tinha onze anos.
Freqüentara como externo, durante alguns meses, uma escola familiar do Caminho Novo, onde algumas senhoras inglesas, sob a direção do pai, distribuíam educação à infância como melhor lhes parecia. Entrava às nove horas, timidamente, ignorando as lições com a maior regularidade, e bocejava até às duas, torcendo-me de insipidez sobre os carcomidos bancos que o colégio comprara, de pinho e usados, lustrosos do contato da malandragem de não sei quantas gerações de pequenos. Ao meio-dia, davam-nos pão com manteiga. Esta recordação gulosa é o que mais pronunciadamente me ficou dos meses de externato; com a lembrança de alguns companheiros — um que gostava de fazer rir à aula, espécie interessante de mono louro, arrepiado, vivendo a morder, nas costas da mão esquerda, uma protuberância calosa que tinha; outro adamado, elegante, sempre retirado, que vinha à escola de branco, engomadinho e radioso, fechada a blusa em diagonal do ombro à cinta por botões de madrepérola. Mais ainda: a primeira vez que ouvi certa injúria crespa, um palavrão cercado de terror no estabelecimento, que os partistas denunciavam às mestras por duas iniciais como em monograma.
Lecionou-me depois um professor em domicílio.
Apesar deste ensaio da vida escolar a que me sujeitou a família, antes da verdadeira provação, eu estava perfeitamente virgem para as sensações novas da nova fase. O internato! Destacada do conchego placentário da dieta caseira, vinha próximo o momento de se definir a minha individualidade. Amarguei por antecipação o adeus às primeiras alegrias; olhei triste os meus brinquedos, antigos já! os meus queridos pelotões de chumbo! espécie de museu militar de todas as fardas, de todas as bandeiras, escolhida amostra da força dos estados, em proporções de microscópio, que eu fazia formar a combate como uma ameaça tenebrosa ao equilíbrio do mundo; que eu fazia guerrear em desordenado aperto, — massa tempestuosa das antipatias geográficas, encontro definitivo e ebulição dos seculares ódios de fronteira e de raça, que eu pacificava por fim, com uma facilidade de Providência Divina, intervindo sabiamente, resolvendo as pendências pela concórdia promíscua das caixas de pau. Força era deixar à ferrugem do abandono o elegante vapor da linha circular do lago, no jardim, onde talvez não mais tornasse a perturbar com a palpitação das rodas a sonolência morosa dos peixinhos rubros, dourados, argentados, pensativos à sombra dos tinhorões, na transparência adamantina da água...
[....]

Quando meu pai entrou comigo, havia no semblante de Aristarco uma pontinha de aborrecimento. Decepção talvez de estatística; o número dos estudantes novos não compensando o número dos perdidos, as novas entradas não contrabalançando as despesas do fim do ano. Mas a sombra de despeito apagou-se logo, como o resto de túnica que apenas tarda a sumir-se numa mutação à vista; e foi com uma explosão de contentamento que o diretor nos acolheu.
[...]
Saiu depois a mostrar o estabelecimento, as coleções, em armários, dos objetos próprios para facilitar o ensino. Eu via tudo curiosamente, sem perder os olhares dos colegas desconhecidos, que me fitavam muito ancho na dignidade do uniforme em folha. O edifício fora caiado e pintado durante as férias, como os navios que aproveitam o descanso nos portos para uma reforma de apresentação. Das paredes pendiam as cartas geográficas, que eu me comprazia de ver como um itinerário de grandes viagens planejadas. Havia estampas coloridas em molduras negras, assuntos de história santa e desenho grosseiro, ou exemplares zoológicos e botânicos, que me revelavam direções de aplicação estudiosa em que eu contava triunfar. Outros quadros vidraçados exibiam sonoramente regras morais e conselhos muito meus conhecidos de amor à verdade, aos pais, e temor de Deus, que estranhei como um código de redundância. Entre os quadros, muitos relativos ao Mestre — os mais numerosos; e se esforçavam todos por arvorar o mestre em entidade incorpórea, argamassada de pura essência de amor e suspiros cortantes de sacrifício, ensinando-me a didascalolatria que eu, de mim para mim, devotamente, jurava desempenhar à risca. Visitamos o refeitório, adornado de trabalhos a lápis dos alunos, a cozinha de azulejo, o grande pátio interno dos recreios, os dormitórios, a capela... De volta à sala de recepção, adjacente à da entrada lateral e fronteira ao escritório, fui apresentado ao Professor Mânlio, aula superior de primeiras letras, um homem aprumado, de barba toda grisalha e cerrada, pessoa excelente, desconfiando por sistema de todos os meninos.
Durante o tempo da visita, não falou Aristarco senão das suas lutas, suores que lhe custava a mocidade e que não eram justamente apreciados. “Um trabalho insano! Moderar, animar, corrigir esta massa de caracteres, onde começa a ferver o fermento das inclinações; encontrar e encaminhar a natureza na época dos violentos ímpetos; amordaçar excessivos ardores; retemperar o animo dos que se dão por vencidos precocemente; espreitar, adivinhar os temperamentos; prevenir a corrupção; desiludir as aparências sedutoras do mal; aproveitar os alvoroços do sangue para os nobres ensinamentos; prevenir a depravação dos inocentes; espiar os sítios obscuros; fiscalizar as amizades; desconfiar das hipocrisias; ser amoroso, ser violento, ser firme; triunfar dos sentimentos de compaixão para ser correto; proceder com segurança, para depois duvidar; punir para pedir perdão depois... Um labor ingrato, titânico, que extenua a alma, que nos deixa acabrunhados ao anoitecer de hoje, para recomeçar com o dia de amanhã... Ah! meus amigos, conclui ofegante, não é o espírito que me custa, não é o estudo dos rapazes a minha preocupação... É o caráter! Não é a preguiça o inimigo, é a imoralidade!” Aristarco tinha para esta palavra uma entonação especial, comprimida e terrível, que nunca mais esquece quem a ouviu dos seus lábios. “A imoralidade!”
E recuava tragicamente, crispando as mãos. “Ah! mas eu sou tremendo quando esta desgraca nos escandaliza. Não! Estejam tranqüilos os pais! No Ateneu, a imoralidade não existe! Velo pela candura das crianças, como se fossem, não digo meus filhos: minhas próprias filhas! O Ateneu é um colégio moralizado! E eu aviso muito a tempo... Eu tenho um código...” Neste ponto o diretor levantou-se de salto e mostrou um grande quadro à parede. “Aqui está o nosso código. Leiam! Todas as culpas são prevenidas, uma pena para cada hipótese: o caso da imoralidade não está lá. O parricídio não figurava na lei grega. Aqui não está a imoralidade. Se a desgraça ocorre, a justiça é o meu terror e a lei é o meu arbítrio! Briguem depois os senhores pais!...”
Afianço-lhes que o meu tremeu por mim. Eu, encolhido, fazia em superlativo a metáfora sabida das varas verdes. Notando a minha perturbação, o diretor desvaneceu-se em afagos. “Mas para os rapazes dignos eu sou um pai!... os maus eu conheço: não são as crianças, principalmente como você, o prazer da família, e que há de ser, estou certo, uma das glórias do Ateneu. Deixem estar...” Eu tomei a sério a profecia e fiquei mais calmo.
Quando meu pai saiu, vieram-me lágrimas, que eu tolhi a tempo de ser forte. [...]
Os companheiros de classe eram cerca de vinte; uma variedade de tipos que me divertia. [...]
Era hora de descanso; passeávamos, conversando. Falamos dos colegas. Vi então [...]
— Ali está um de joelhos...
— De joelhos... Não há perguntar; é o Franco. Uma alma penada. Hoje é o primeiro dia, ali está de joelhos o Franco. Assim atravessa as semanas, os meses, assim o conheço, nesta casa, desde que entrei. De joelhos como um penitente expiando a culpa de uma raça. O diretor chama-lhe cão, diz que tem calos na cara. Se não tivesse calos no joelho, não haveria canto do Ateneu que ele não marcasse com o sangue de uma penitência. O pai é de Mato Grosso; mandou-o para aqui com uma carta em que o recomendava como incorrigível, pedindo severidade. O correspondente envia de tempos a tempos um caixeiro que faz os pagamentos e deixa lembranças. Não sai nunca... Afastemo-nos que aí vem um grupo de gaiatos.
Um tropel de rapazes atravessou-nos a frente, provocando-me com surriadas.
“Viu aquele da frente, que gritou calouro? Se eu dissesse o que se conta dele... aqueles olhinhos úmidos de Senhora das Dores... Olhe; um conselho; faça-se forte aqui, faça-se homem. Os fracos perdem-se.
“Isto é uma multidão; é preciso força de cotovelos para romper. Não sou criança, nem idiota; vivo só e vejo de longe; mas vejo. Não pode imaginar. Os gênios fazem aqui dois sexos, como se fosse uma escola mista. Os rapazes tímidos, ingênuos, sem sangue, são brandamente impelidos para o sexo da fraqueza; são dominados, festejados, pervertidos como meninas ao desamparo. Quando, em segredo dos pais, pensam que o colégio é a melhor das vidas, com o acolhimento dos mais velhos, entre brejeiro e afetuoso, estão perdidos... Faça-se homem, meu amigo! Comece por não admitir protetores.”
Ia por diante Rebelo com os extraordinários avisos, quando senti puxarem-me a blusa. Quase cai. Voltei-me; vi a distancia uma cara amarela, de gordura balofa, olhos vesgos sem pestanas, virada para mim, esgarçando a boca em careta de riso cínico. Um sujeito evidentemente mais forte do que eu. Não obstante apanhei com raiva um pedaço de telha e arremessei O tratante livrou-se, injuriando-me com uma gargalhada, e sumiu-se. “Muito bem”, aplaudiu Rebelo. E à pergunta que fiz, informou: aquele desagradável rapaz era o Barbalho, que havia de ser um dia preso como gatuno de jóias, nosso companheiro da aula primária, do número dos esquecidos nos bancos do fundo.
[...]
Nem um só de quem me pudesse aproximar. Rente com a parede, para que me não dessem atenção, insinuei-me até o lugar donde o inspetor Silvino, um grande magro, de avultado nariz e suíças dilaceradas, olhar miado e vivo como chispas, em órbitas de antro, fiscalizava o recreio, graduando a folgança, à mercê de um temível canhenho. Sentava-se à entrada do portão do lavatório. Um pouco além da cadeira do Silvino, fiquei a salvo. Do seguro retiro avistava, no terreiro, fresco das largas sombras da hora, o movimento dos colegas.
Num ponto e noutro formavam-se pequenos sarilhos, condensando irregularmente a dispersão dos alunos. Eram os pobres novatos que os veteranos sovavam à cacholeta, fraternalmente.
Perto de mim vi o Franco. Sempre de penitência; em pé, cara contra a parede. Como Silvino dava-lhe as costas, divertia-se a pegar moscas para arrancar a cabeça e ver morrer o bichinho na palma da mão. Perguntei-lhe por que estava de castigo. Sem olhar, de mau modo: “Lá sei! disse ele. Porque me mandaram”. E continuou a pegar as moscas. Franco era um rapazola de quatorze anos, raquítico, de olhos pasmados, face lívida, pálpebras pisadas. À fronte, com a expressão vaga dos olhos e obliqüidade dolorida dos supercílios, pousava-lhe uma névoa de aflição e paciência, como se vê no Flos sanctorum. A parte inferior do semblante rebelava-se; um canto dos lábios franzia-se em contração constante de odiento desprezo. Franco não ria nunca. Sorria apenas, assistindo a uma briga séria, interessando-se pelo desenlace como um apostador de rinha, enfurecendo-se quando apartavam. Uma queda alegrava-o, principalmente perigosa. Vivia isolado no circulo da excomunhão com que o diretor, invariavelmente, o fulminava todas as manhãs, lendo no refeitório perante o colégio as notas da véspera.
Os professores já sabiam. À nota do Franco, sempre má, devia seguir-se especial comentário deprimente, que a opinião esperava e ouvia com delícia, fartando-se de desprezar. Nenhum de nós como ele! E o zelo do mestre cada dia retemperava o velho anátema. Não convinha expulsar. Uma coisa destas aproveita-se como um bibelô do ensino intuitivo, explora-se como a miséria do hilota, para a lição fecunda do asco. A própria indiferença repugnante da vitima é útil.
Três anos havia que o infeliz, num suplício de pequeninas humilhações cruéis, agachado, abatido, esmagado, sob o peso das virtudes alheias mais que das próprias culpas, ali estava, — cariátide forçada no edifício de moralização do Ateneu, exemplar perfeito de depravação oferecido ao horror santo dos puros.
Várias vezes nessa tarde fui assaltado pela chacota impertinente do Barbalho. O endemoninhado caolho puxava-me a roupa, esbarrava-me encontrões e fugia com grandes risadas falsas, ou parava-me de súbito em frente, e revestindo-se de quanta seriedade lhe era suscetível o açafrão da cara, perguntava: “Mudas as calças?” Um inferno. Até que afinal o meu desespero estourou.
Foi à noite, pouco antes da ceia. Estávamos a um canto mal iluminado do pátio, quase sós. O biltre reconheceu-me e arreganhou uma inexprimível interjeição de mofa. Não esperei por mais. Estampei-lhe uma bofetada. Meio segundo depois, rolávamos na poeira, engalfinhados como feras. Uma luta rápida. Avisaram-nos que vinha o Silvino. Barbalho evadiu-se. Eu verifiquei que tinha o peito da blusa coberto de sangue que me corria do nariz.
Uma hora mais tarde, na cama de ferro do salão azul, compenetrado da tristeza de hospital dos dormitórios, fundos na sombra do gás mortiço, trincando a colcha branca, eu meditava o retrospecto do meu dia.
Era assim o colégio. Que fazer da matalotagem dos meus planos?
Onde meter a máquina dos meus ideais naquele mundo de brutalidade, que me intimidava com os obscuros detalhes e as perspectivas informes, escapando à investigação da minha inexperiência? Qual o meu destino, naquela sociedade que o Rebelo descrevera horrorizado, com as meias frases de mistério, suscitando temores indefinidos, recomendando energia, como se coleguismo fosse hostilidade? De que modo alinhar a norma generosa e sobranceira de proceder com a obsessão pertinaz do Barbalho? Inutilmente buscara reconhecer no rosto dos rapazes o nobre aspecto da solenidade dos prêmios, dando-me idéia da legião dos soldados do trabalho, que fraternizavam no empenho comum, unidos pelo coração e pela vantagem do coletivo esforço. Individualizados na debandada do receio, com as observações ainda mais da critica do Rebelo, bem diverso sentimento inspiravam-me. A reação do contraste induzia-me a um conceito de repugnância que o hábito havia de esmorecer, que me tirava lágrimas àquela noite. Ao mesmo tempo oprimia-me o pressentimento da solidão moral, fazendo adivinhar que as preocupações mínimas e as concomitantes surpresas inconfessáveis dariam pouco para as efusões de alívio, a que corresponde o conselho, a consolação.
Nada de protetor, dissera Rebelo. Era o ermo. E, na solidão, conspiradas, as adversidades de toda a espécie, falsidade traiçoeira dos afetos, perseguição da malevolência, espionagem da vigilância; por cima de tudo, céu de trovões sobre os desalentos, a fúria tonante de Júpiter-diretor, o tremendo Aristarco dos momentos graves.
CONTO DA ESCOLA - Machado de Assis





A escola era na Rua do Costa, um sobradinho de grade de pau. O ano era de 1840. Naquele dia — uma segunda-feira, do mês de maio — deixei-me estar alguns instantes na Rua da Princesa a ver onde iria brincar amanhã. Hesitava entre o morro de S. Diogo e o Campo de Sant’Ana, que não era então esse parque atual, construção de gentleman, mas um espaço rústico, mais ou menos infinito, alastrado de lavadeiras, capim e burros soltos. Morro ou campo? Tal era o problema. De repente disse comigo que o melhor era a escola. E guiei para a escola. Aqui vai a razão.
Na semana anterior tinha feito dois suetos, e, descoberto o caso, recebi o pagamento das mãos de meu pai, que me deu uma sova de vara de marmeleiro. As sovas de meu pai doíam por muito tempo. Era um velho empregado do Arsenal de Guerra, ríspido e intolerante. Sonhava para mim uma grande posição comercial, e tinha ânsia de me ver com os elementos mercantis, ler, escrever e contar, para me meter de caixeiro. Citava-me nomes de capitalistas que tinham começado ao balcão. Ora, foi a lembrança do último castigo que me levou naquela manhã para o colégio. Não era um menino de virtudes.
Subi a escada com cautela, para não ser ouvido do mestre, e cheguei a tempo; ele entrou na sala três ou quatro minutos depois. Entrou com o andar manso do costume, em chinelas de cordovão, com a jaqueta de brim lavada e desbotada, calça branca e tesa e grande colarinho caído. Chamava-se Policarpo e tinha perto de cinqüenta anos ou mais. Uma vez sentado, extraiu da jaqueta a boceta de rapé e o lenço vermelho, pô-los na gaveta; depois relanceou os olhos pela sala. Os meninos, que se conservaram de pé durante a entrada dele, tornaram a sentar-se. Tudo estava em ordem; começaram os trabalhos. >— Seu Pilar, eu preciso falar com você, disse-me baixinho o filho do mestre.
Chamava-se Raimundo este pequeno, e era mole, aplicado, inteligência tarda. Raimundo gastava duas horas em reter aquilo que a outros levava apenas trinta ou cinqüenta minutos; vencia com o tempo o que não podia fazer logo com o cérebro. Reunia a isso um grande medo ao pai. Era uma criança fina, pálida, cara doente; raramente estava alegre. Entrava na escola depois do pai e retirava-se antes. O mestre era mais severo com ele do que conosco.
— O que é que você quer?
— Logo, respondeu ele com voz trêmula.
Começou a lição de escrita. Custa-me dizer que eu era dos mais adiantados da escola; mas era. Não digo também que era dos mais inteligentes, por um escrúpulo fácil de entender e de excelente efeito no estilo, mas não tenho outra convicção. Note-se que não era pálido nem mofino: tinha boas cores e músculos de ferro. Na lição de escrita, por exemplo, acabava sempre antes de todos, mas deixava-me estar a recortar narizes no papel ou na tábua, ocupação sem nobreza nem espiritualidade, mas em todo caso ingênua. Naquele dia foi a mesma coisa; tão depressa acabei, como entrei a reproduzir o nariz do mestre, dando-lhe cinco ou seis atitudes diferentes, das quais recordo a interrogativa, a admirativa, a dubitativa e a cogitativa. Não lhes punha esses nomes, pobre estudante de primeiras letras que era; mas, instintivamente, dava-lhes essas expressões. Os outros foram acabando; não tive remédio senão acabar também, entregar a escrita, e voltar para o meu lugar.
Com franqueza, estava arrependido de ter vindo. Agora que ficava preso, ardia por andar lá fora, e recapitulava o campo e o morro, pensava nos outros meninos vadios, o Chico Telha, o Américo, o Carlos das Escadinhas, a fina flor do bairro e do gênero humano. Para cúmulo de desespero, vi através das vidraças da escola, no claro azul do céu, por cima do Morro do Livramento, um papagaio de papel, alto e largo, preso de uma corda imensa, que bojava no ar, uma coisa soberba. E eu na escola, sentado, pernas unidas, com o livro de leitura e a gramática nos joelhos.
— Fui um bobo em vir, disse eu ao Raimundo.
— Não diga isso, murmurou ele.
Olhei para ele; estava mais pálido. Então lembrou-me outra vez que queria pedir-me alguma coisa, e perguntei-lhe o que era. Raimundo estremeceu de novo, e, rápido, disse-me que esperasse um pouco; era uma coisa particular.
— Seu Pilar... murmurou ele daí a alguns minutos.
— Que é?
— Você...
— Você quê?
Ele deitou os olhos ao pai, e depois a alguns outros meninos. Um destes, o Curvelo, olhava para ele, desconfiado, e o Raimundo, notando-me essa circunstância, pediu alguns minutos mais de espera. Confesso que começava a arder de curiosidade. Olhei para o Curvelo, e vi que parecia atento; podia ser uma simples curiosidade vaga, natural indiscrição; mas podia ser também alguma coisa entre eles. Esse Curvelo era um pouco levado do diabo. Tinha onze anos, era mais velho que nós.
Que me quereria o Raimundo? Continuei inquieto, remexendo-me muito, falando-lhe baixo, com instância, que me dissesse o que era, que ninguém cuidava dele nem de mim. Ou então, de tarde...
— De tarde, não, interrompeu-me ele; não pode ser de tarde.
— Então agora...
— Papai está olhando.
Na verdade, o mestre fitava-nos. Como era mais severo para o filho, buscava-o muitas vezes com os olhos, para trazê-lo mais aperreado. Mas nós também éramos finos; metemos o nariz no livro, e continuamos a ler. Afinal cansou e tomou as folhas do dia, três ou quatro, que ele lia devagar, mastigando as idéias e as paixões. Não esqueçam que estávamos então no fim da Regência, e que era grande a agitação pública. Policarpo tinha decerto algum partido, mas nunca pude averiguar esse ponto. O pior que ele podia ter, para nós, era a palmatória. E essa lá estava, pendurada do portal da janela, à direita, com os seus cinco olhos do diabo. Era só levantar a mão, despendurá-la e brandi-la, com a força do costume, que não era pouca. E daí, pode ser que alguma vez as paixões políticas dominassem nele a ponto de poupar-nos uma ou outra correção. Naquele dia, ao menos, pareceu-me que lia as folhas com muito interesse; levantava os olhos de quando em quando, ou tomava uma pitada, mas tornava logo aos jornais, e lia a valer.
No fim de algum tempo — dez ou doze minutos — Raimundo meteu a mão no bolso das calças e olhou para mim.
— Sabe o que tenho aqui?
— Não.
— Uma pratinha que mamãe me deu.
— Hoje?
— Não, no outro dia, quando fiz anos...
— Pratinha de verdade?
— De verdade.
Tirou-a vagarosamente, e mostrou-me de longe. Era uma moeda do tempo do rei, cuido que doze vinténs ou dois tostões, não me lembra; mas era uma moeda, e tão moeda que me fez pular o sangue no coração. Raimundo revolveu em mim o olhar pálido; depois perguntou-me se a queria para mim. Respondi-lhe que estava caçoando, mas ele jurou que não.
— Mas então você fica sem ela?
— Mamãe depois me arranja outra. Ela tem muitas que vovô lhe deixou, numa caixinha; algumas são de ouro. Você quer esta?
Minha resposta foi estender-lhe a mão disfarçadamente, depois de olhar para a mesa do mestre. Raimundo recuou a mão dele e deu à boca um gesto amarelo, que queria sorrir. Em seguida propôs-me um negócio, uma troca de serviços; ele me daria a moeda, eu lhe explicaria um ponto da lição de sintaxe. Não conseguira reter nada do livro, e estava com medo do pai. E concluía a proposta esfregando a pratinha nos joelhos...
Tive uma sensação esquisita. Não é que eu possuísse da virtude uma idéia antes própria de homem; não é também que não fosse fácil em empregar uma ou outra mentira de criança. Sabíamos ambos enganar ao mestre. A novidade estava nos termos da proposta, na troca de lição e dinheiro, compra franca, positiva, toma lá, dá cá; tal foi a causa da sensação. Fiquei a olhar para ele, à toa, sem poder dizer nada.
Compreende-se que o ponto da lição era difícil, e que o Raimundo, não o tendo aprendido, recorria a um meio que lhe pareceu útil para escapar ao castigo do pai. Se me tem pedido a coisa por favor, alcançá-la-ia do mesmo modo, como de outras vezes; mas parece que era a lembrança das outras vezes, o medo de achar a minha vontade frouxa ou cansada, e não aprender como queria — e pode ser mesmo que em alguma ocasião lhe tivesse ensinado mal —, parece que tal foi a causa da proposta. O pobre-diabo contava com o favor — mas queria assegurar-lhe a eficácia, e daí recorreu à moeda que a mãe lhe dera e que ele guardava como relíquia ou brinquedo; pegou dela e veio esfregá-la nos joelhos, à minha vista, como uma tentação... Realmente, era bonita, fina, branca, muito branca; e para mim, que só trazia cobre no bolso, quando trazia alguma coisa, um cobre feio, grosso, azinhavrado...
— Não queria recebê-la, e custava-me recusá-la. Olhei para o mestre, que continuava a ler, com tal interesse, que lhe pingava o rapé do nariz. — Ande, tome, dizia-me baixinho o filho. E a pratinha fuzilava-lhe entre os dedos, como se fora diamante... Em verdade, se o mestre não visse nada, que mal havia? E ele não podia ver nada, estava agarrado aos jornais lendo com fogo, com indignação...
— Tome, tome...
Relanceei os olhos pela sala, e dei com os do Curvelo em nós; disse ao Raimundo que esperasse. Pareceu-me que o outro nos observava, então dissimulei; mas daí a pouco, deitei-lhe outra vez o olho, e — tanto se ilude a vontade! — não lhe vi mais nada. Então cobrei ânimo. — Dê cá...
Raimundo deu-me a pratinha, sorrateiramente; eu meti-a na algibeira das calças, com um alvoroço que não posso definir. Cá estava ela comigo, pegadinha à perna. Restava prestar o serviço, ensinar a lição, e não me demorei em fazê-lo, nem o fiz mal, ao menos conscientemente; passava-lhe a explicação em um retalho de papel que ele recebeu com cautela e cheio de atenção. Sentia-se que despendia um esforço cinco ou seis vezes maior para aprender um nada; mas contanto que ele escapasse ao castigo, tudo iria bem.
De repente, olhei para o Curvelo e estremeci; tinha os olhos em nós, com um riso que me pareceu mau. Disfarcei; mas daí a pouco, voltando-me outra vez para ele, achei-o do mesmo modo, com o mesmo ar, acrescendo que entrava a remexer-se no banco, impaciente. Sorri para ele e ele não sorriu; ao contrário, franziu a testa, o que lhe deu um aspecto ameaçador. O coração bateu-me muito.
— Precisamos muito cuidado, disse eu ao Raimundo.
— Diga-me isto só, murmurou ele.
Fiz-lhe sinal que se calasse; mas ele instava, e a moeda, cá no bolso, lembrava-me o contrato feito. Ensinei-lhe o que era, disfarçando muito; depois, tomei a olhar para o Curvelo, que me pareceu ainda mais inquieto, e o riso, dantes mau, estava agora pior. Não é preciso dizer que também eu ficara em brasas, ansioso que a aula acabasse; mas nem o relógio andava como das outras vezes, nem o mestre fazia caso da escola; este lia os jornais, artigo por artigo, pontuando-os com exclamações, com gestos de ombros com uma ou duas pancadinhas na mesa. E lá fora, no céu azul, por cima do morro, o mesmo eterno papagaio, guinando a um lado e outro, como se me chamasse a ir ter com ele. Imaginei-me ali com os livros e a pedra embaixo da mangueira, e a pratinha no bolso das calças, que eu não daria a ninguém, nem que me serrassem; guardá-la-ia em casa, dizendo a mamãe que a tinha achado na rua. Para que me não fugisse, ia-a apalpando, roçando-lhe os dedos pelo cunho, quase lendo pelo tato a inscrição, com uma grande vontade de espiá-la.
— Oh! seu Pilar! bradou o mestre com voz de trovão.
Estremeci como se acordasse de um sonho, e levantei-me às pressas. Dei com o mestre, olhando para mim, cara fechada, jornais dispersos, e ao pé da mesa, em pé, o Curvelo. Pareceu-me adivinhar tudo.
— Venha cá! bradou o mestre.
Fui e parei diante dele. Ele enterrou-me pela consciência dentro um par de olhos pontudos; depois chamou o filho. Toda a escola tinha parado; ninguém mais lia, ninguém fazia um só movimento. Eu, conquanto não tirasse os olhos do mestre, sentia no ar a curiosidade e o pavor de todos.
— Então o senhor recebe dinheiro para ensinar as lições aos outros? disse-me o Policarpo.
— Eu...
— Dê cá a moeda que este seu colega lhe deu! clamou.
Não obedeci logo, mas não pude negar nada. Continuei a tremer muito. Policarpo bradou de novo que lhe desse a moeda, e eu não resisti mais, meti a mão no bolso, vagarosamente, saquei-a e entreguei-lha. Ele examinou-a de um e outro lado, bufando de raiva; depois estendeu o braço e atirou-a à rua. E então disse-nos uma porção de coisas duras, que tanto o filho como eu acabávamos de praticar uma ação feia, indigna, baixa, uma vilania, e para emenda e exemplo íamos ser castigados. Aqui pegou da palmatória.
— Perdão, seu mestre... solucei eu.
— Não há perdão! De cá a mão! dê cá! vamos! sem-vergonha! dê cá a mão!
— Mas, seu mestre...
— Olhe que é pior!
Estendi-lhe a mão direita, depois a esquerda, e fui recebendo os bolos uns por cima dos outros, até completar doze, que me deixaram as palmas vermelhas e inchadas. Chegou a vez do filho, e foi a mesma coisa; não lhe poupou nada, dois, quatro, oito, doze bolos. Acabou, pregou-nos outro sermão. Chamou-nos sem-vergonhas, desaforados, e jurou que se repetíssemos o negócio, apanharíamos tal castigo que nos havia de lembrar para todo o sempre. E exclamava: Porcalhões! tratantes! faltos de brio!
Eu por mim, tinha a cara no chão. Não ousava fitar ninguém, sentia todos os olhos em nós. Recolhi-me ao banco, soluçando, fustigado pelos impropérios do mestre. Na sala arquejava o terror; posso dizer que naquele dia ninguém faria igual negócio. Creio que o próprio Curvelo enfiara de medo. Não olhei logo para ele, cá dentro de mim jurava quebrar-lhe a cara, na rua, logo que saíssemos, tão certo como três e dois serem cinco.
Daí a algum tempo olhei para ele; ele também olhava para mim, mas desviou a cara, e penso que empalideceu. Compôs-se e entrou a ler em voz alta; estava com medo. Começou a variar de atitude, agitando-se à toa, coçando os joelhos, o nariz. Pode ser até que se arrependesse de nos ter denunciado; e na verdade, por que denunciar-nos? Em que é que lhe tirávamos alguma coisa?
— Tu me pagas! tão duro como osso! dizia eu comigo.
Veio a hora de sair, e saímos; ele foi adiante, apressado, e eu não queria brigar ali mesmo, na Rua do Costa, perto do colégio; havia de ser na Rua Larga de S. Joaquim. Quando, porém, cheguei à esquina, já o não vi; provavelmente escondera-se em algum corredor ou loja; entrei numa botica, espiei em outras casas, perguntei por ele a algumas pessoas, ninguém me deu notícia. De tarde faltou à escola.
Em casa não contei nada, é claro; mas para explicar as mãos inchadas, menti a minha mãe, disse-lhe que não tinha sabido a lição. Dormi nessa noite, mandando ao diabo os dois meninos, tanto o da denúncia como o da moeda. E sonhei com a moeda; sonhei que, ao tornar à escola, no dia seguinte, dera com ela na rua, e a apanhara, sem medo nem escrúpulos...
De manhã, acordei cedo. A idéia de ir procurar a moeda fez-me vestir depressa. O dia estava esplêndido, um dia de maio, sol magnífico, ar brando, sem contar as calças novas que minha mãe me deu, por sinal que eram amarelas. Tudo isso, e a pratinha... Saí de casa, como se fosse trepar ao trono de Jerusalém. Piquei o passo para que ninguém chegasse antes de mim à escola; ainda assim não andei tão depressa que amarrotasse as calças. Não, que elas eram bonitas! Mirava-as, fugia aos encontros, ao lixo da rua...
Na rua encontrei uma companhia do batalhão de fuzileiros, tambor à frente, rufando. Não podia ouvir isto quieto. Os soldados vinham batendo o pé rápido, igual, direita, esquerda, ao som do rufo; vinham, passaram por mim, e foram andando. Eu senti uma comichão nos pés, e tive ímpeto de ir atrás deles. Já lhes disse: o dia estava lindo, e depois o tambor... Olhei para um e outro lado; afinal, não sei como foi, entrei a marchar também ao som do rufo, creio que cantarolando alguma coisa: Rato na casaca... Não fui à escola, acompanhei os fuzileiros, depois enfiei pela Saúde, e acabei a manhã na Praia da Gamboa. Voltei para casa com as calças enxovalhadas, sem pratinha no bolso nem ressentimento na alma. E contudo a pratinha era bonita e foram eles, Raimundo e Curvelo, que me deram o primeiro conhecimento, um da corrupção, outro da delação; mas o diabo do tambor...

sexta-feira, 3 de abril de 2009

Título: A teoria educacional no ocidente entre modernidade e pós-modernidade

Autor: PAULO GHIRALDELLI JR (Professor de Filosofia Contemporânea e Filosofia da Educação da Unesp)



Resumo: O artigo trata das principais forças em filosofia da educação no Ocidente Moderno e Contemporâneo. Particularmente, destaca a posição do Brasil nos últimos anos, dado que localiza na contribuição de Paulo Freire, junto com o alemão Herbart e com o norte-americano Dewey, a formulação das linhas mestras da pedagogia moderna. O texto também faz menção ao trabalho atual do neopragmatismo, sob o qual nasce a filosofia da educação inspirada nos filósofos norte americanos Richard Rorty e Donald Davidson, que revolucionam atualmente não só a filosofia mas seus campos aplicados, como o direito, a religião, a política e, como não poderia deixar de ser, a educação.
Palavras-chave: filosofia da educação; história da educação; modernidade.


Nos séculos XIX e XX, no Ocidente, ocorreram três grandes revoluções em teoria educacional. Na transição do século XX para o XXI, está-se assistindo uma quarta revolução. As três primeiras, segundo historiadores da filosofia da educação, têm seus melhores representantes nos nomes de Herbart, Dewey e Paulo Freire. Já a quarta revolução, da maneira como está ocorrendo, pode encontrar justificativas em Richard Rorty e Donald Davidson. As três primeiras foram revoluções modernas em teoria educacional, enquanto a quarta é pós-moderna.
Cada uma dessas revoluções girou em torno da emergência de um elemento-chave na discussão entre os filósofos da educação: em Herbart, a emergência da mente;. em Dewey, a emergência da democracia; em Paulo Freire, a emergência do oprimido. A quarta revolução, por sua vez, segue em torno da emergência da metáfora ¾ entendida segundo as novas visões de Davidson estudado por Rorty.
As revoluções anteriores não perderam a importância diante daquela que está ocorrendo agora, pois pertencem ao passado em um sentido cronológico e não valorativo, pelo qual teriam visto a perda de relevância de seus elementos-chave. Afinal, hoje em dia, avançou-se muito em filosofia da mente e não seria possível fazer teoria educacional sem considerá-la. Assim, a herança de Herbart está viva. No caso de Dewey, mais ainda tem-se a sensação de algo vivo: não passaria pela intenção da maioria dos filósofos da educação no Ocidente preferirem a educação autoritária no lugar da educação democrática, e talvez poucos ainda acreditem que poderia haver verdadeira educação em uma situação social não dinâmica e não livre. Fora alguns ressentidos da direita e da velha guarda marxista, a maioria dos filósofos da educação considera a democracia um chão necessário para toda e qualquer educação. Paulo Freire, por sua vez, está presente quando se considera que os países ricos tornaram-se mais ricos e os pobres mais pobres e que o fenômeno do aparecimento do "desenraizado", seja ele o pobre ou o pertencente a grupos minoritários, é agora também visível mesmo onde estava prometido que desapareceria ou não surgiria: nas democracias ricas da América do Norte e Europa. As três primeiras revoluções, portanto, não se distinguem da revolução pós-moderna em teoria da educação por um pretenso fato de que esta última teria superado tudo o que foi pensado em educação anteriormente. O que ocorre é que a revolução pós-moderna em teoria educacional está acoplada a uma maneira de conversar, em termos técnicos de filosofia e filosofia da educação, que desloca as filosofias da educação que justificavam as teorias educacionais modernas, nomeadas aqui por Herbart, Dewey e Freire.
O que se pretende dizer com isto é que as teorias educacionais modernas estiveram articuladas à filosofia da educação pré-linguistic turn. Por sua vez, a teoria da educação que melhor se insere no campo pós-moderno, e talvez possa vir a manter o nosso apreço pela democracia, está articulada às formas de conversação adquiridas, em filosofia, após a virada lingüística e neopragmática. Porém, as teorias educacionais diferem não apenas em suas justificativas filosóficas, mas também em seus aconselhamentos e procedimentos didáticos. Segundo o pensamento rortyano, a filosofia da educação não é o fundamento da teoria educacional, mas apenas uma forma de discurso ad hoc que permite melhorar nossa coerência prática e, talvez, potencializar o que se está fazendo. Sendo assim, não serão expostas aqui as filosofias para depois derivar delas as teorias educacionais. Ao contrário, serão apresentadas as diferenças entre elas e, só então, demonstrado, de modo breve, que é possível encontrar diferentes filosofias da educação para cada uma dessas teorias educacionais.
O Quadro 1 apresenta as quatro teorias educacionais aqui citadas, em seus passos didáticos, em comparação.
Antes de qualquer comentário explicativo dos passos citados no Quadro 1, vale fazer um alerta: nenhuma dessas formulações deve ser entendida através da dualidade "diretividade versus não-diretividade". O grande erro dos livros em teoria da educação e didática é o de apelarem para essa divisão e, então, não mais entenderem sobre o que estão falando. Todas as teorias educacionais apresentadas envolvem uma exaustiva participação do professor e do estudante. Muito menos tais teorias devem ser consideradas através da dualidade "progressista versus não-progressista". Este entendimento, pior que o anterior, crivou alguns livros que abordavam a didática nos anos 80, trazendo mais confusão que acerto e favorecendo o pensamento esquemático que, no fundo, é sempre o antipensamento.
A seguir, comentam-se em uma dialética conjunta, as três primeiras partes do Quadro 1, deixando para abordar em separado a teoria educacional pós-moderna.
Passo 1 ¾ O processo de ensino-aprendizagem, para Herbart, começa com a preparação, que consiste na atividade que o professor desenvolve recordando ao aluno o assunto anteriormente ensinado ou algo que o aluno já sabe. Dewey, por sua vez, não vê necessidade de tal procedimento, pois acredita que o processo de ensino-aprendizagem tem início quando, pela atividade dos estudantes, eles se defrontam com dificuldades e problemas, tendo então o interesse aguçado. Paulo Freire vê o processo de ensino-aprendizagem se iniciando em um momento especial, quando o educador está vivendo na comunidade dos educandos, observando suas vidas e participando de seus apuros ¾ pesquisando sobre a comunidade, deixando de ser educador para ser educador-educando.
Passo 2 ¾ Segundo a teoria herbartiana, o professor, após a preparação, já pode apresentar aos alunos o novo assunto, os conceitos morais, históricos e científicos que serão a matéria do processo de ensino-aprendizagem, constituindo-se no carro-chefe do processo mental despertando interesses. A teoria deweyana, ao contrário, acredita que o carro-chefe da movimentação psicológica são os interesses e que estes são despertados pelo encontro entre dificuldades e a delimitação de problemas. Assim, para Dewey, da atividade seguem-se a enumeração e a eleição de problemas. Paulo Freire concorda com Dewey, mas acredita que os problemas não são tão motivantes quanto os "temas geradores" ¾as palavras-chave colhidas no seio da comunidade de educandos e que podem despertar a atenção destes, uma vez que fazem parte de suas atividades vitais.
Passo 3 ¾ Para Herbart, uma vez que o novo assunto foi introduzido, isto é, apresentados novas idéias e conceitos morais, históricos e científicos, estes serão assimilados pelos alunos à medida que forem induzidos a uma associação com as idéias e conceitos já conhecidos. Dewey, por sua vez, nesta fase do processo de ensino-aprendizagem, está preocupado em ajudar os alunos na atividade de formulação de hipóteses ou caminhos heurísticos para enfrentar os problemas admitidos na fase anterior. Para Paulo Freire, uma vez que os temas geradores já tenham sido trabalhados, começa-se a problematizá-los, desenvolvendo-se uma atividade de diálogo horizontal entre educador e educando e vice-versa, de modo que os temas geradores possam ser entendidos como problemas ¾ mas problema, neste caso, quer dizer problema político. A "problematização" ocorre se o tema gerador é visto nas suas relações com o poder, com a perversidade das instituições, com a demagogia das elites, etc.
Passo 4 ¾ Nesta fase, segundo a teoria herbartiana, o aluno já aprendeu o novo por associação com o velho, necessitando agora sair do caso particular exposto e traçar generalizações, abstrações, leis. O professor, é claro, pode insistir para que o aluno faça inferências e chegue então a adotar leis, na moral e na ciência. A teoria deweyana, nesta fase, pretende alimentar as hipóteses formuladas na fase anterior. Sendo assim, a atividade do professor e do estudante agora é a de buscar nas bibliotecas e outros meios, inclusive na própria memória, os dados capazes de dar uma arquitetura mais empírica às hipóteses ou uma melhor razoabilidade aos caminhos heurísticos. Na teoria freireana, este é o momento em que educador-educando e educando-educador, ao traçarem as relações entre suas vidas e o poder, através da problematização dos temas geradores, percebem o que acontece com eles enquanto seres sociais e políticos, chegando, então, à "conscientização" ¾ passam a ter consciência de suas condições na pólis.
Passo 5 ¾ Nesta última fase, na teoria herbartiana, o aluno deve ser posto na condição de aplicar as leis, abstrações e generalizações a casos diferentes, ainda inéditos na sua situação particular de ensino-aprendizagem. Na última fase, na teoria deweyana, opta-se por uma ou duas hipóteses em detrimento de outras, uma vez que há confirmação destas por processos experimentais. Tem-se, então, ou uma tese ou opta-se por uma heurística e, assim, por uma conclusão, na medida em que a plausibilidade das outras formulações heurísticas caiu por terra diante das exigências de coerência lógica, etc. O passo final na teoria freireana é a tentativa de solução do problema apontado desde o tema gerador através da ação política, que pode inclusive ter desdobramentos práticos de ação político-partidária.
Nos três casos, está-se diante de teorias educacionais modernas, que poderiam muito bem se sentirem confortáveis ¾ e assim o fizeram ¾ uma vez que tinham uma boa justificativa filosófica para assim procederem. Justificativas filosóficas que foram montadas pelos grandes movimentos do Iluminismo e do Romantismo entre os séculos XVII e XX e pelo movimento keynesiano de construção do Welfare State, no pós-Segunda Guerra Mundial.
Herbart e Freire pretendiam, na formulação humanista, criar o homem enquanto ser capaz de se autodeterminar. É claro que Herbart pensava isso em termos iluministas clássicos, ou seja, o homem enquanto ser que sai da menoridade e passa a julgar as coisas pela própria razão é o homem que se autodetermina ¾ o verdadeiro indivíduo (Kant) ¾ enquanto Freire considerava essa idéia em termos das várias filosofias contemporâneas, com inspiração mais romântica, na vaga do existencialismo (marxista e/ou cristão): o homem deveria deixar de ser objeto e tornar-se sujeito de sua própria história. Dewey, por sua vez, queria o bípede sem penas como ser capaz de enfrentar a mudança contínua própria da vida livre, a vida democrática. Assim, para Dewey, haveria ainda um sexto passo: o próprio conjunto dos cinco passos era mais importante que a conclusão indicada pela hipótese que havia se mostrado correta. Para ele, aprender os cinco passos, isto é, aprender o que ele chamava de "procedimento científico" para a resolução de problemas era, na verdade, "aprender a aprender" e, assim, estar preparado para qualquer eventualidade da vida moderna. Mais que Paulo Freire e muito mais ainda que Herbart, Dewey propôs uma filosofia da educação que consistia na consideração da contingência em um mundo completamente naturalizado e historicizado. Paulo Freire também acreditava, como Dewey, que a educação deveria preparar para a eventualidade, só que as eventualidades do "desenraizado" seriam mais repetitivas: sempre seriam problemas políticos nos quais o "desenraizado" estaria sendo oprimido.

TEORIA EDUCACIONAL PÓS-MODERNA
Passo 1 ¾ O início do processo de ensino-aprendizagem, segundo a postura pós-moderna, se dá pela apresentação direta de problemas e situações problemáticas, ou mesmo curiosas e difíceis ¾ questões culturais, éticas, étnicas, de convivência entre gêneros, mentalidades e modelos políticos diferentes ¾, que são demonstradas por diversos meios: do cinema ao romance, passando pelo conto, pelos comic books, pela música, pela poesia e teatro, etc.
Passo 2 ¾ Na seqüência, o processo de ensino-aprendizagem visa relacionar as situações problemáticas e os problemas propriamente ditos com aqueles presentes na vida cotidiana dos estudantes, dos seus avós e pais e, enfim, do seu grupo social ou familiar ou de amigos e até mesmo do seu país ¾ presente, passado e futuro. Aqui, o estudante é convidado a ser um personagem da narrativa contada no passo anterior e, ao mesmo tempo, um filósofo, isto é, segundo Nietzsche, um juiz dos desdobramentos internos da narrativa.
Passo 3 ¾ É feita a redescrição das narrativas nas quais os problemas estavam inseridos, através de outras narrativas de ordem ficcional, histórica, científica e filosófica. O importante é o estudante perceber que essas narrativas que redescrevem aquelas não estão hierarquizadas epistemologicamente. Não há uma narrativa que aprende a realidade como ela é, mas há, em cada uma, jogos de linguagem distintos que estão aptos, pragmaticamente, para uma coisa e não outra. Quando se pretende saber como uma nave espacial funciona, um bom vocabulário é o dos físicos, porém, se a intenção é dizer para a namorada como a nave atravessa os céus em uma noite estrelada, seria melhor um vocabulário ficcional ¾ seria pedante e inútil para o namoro a explicação física! Entretanto, o erro seria considerar que, no segundo caso, está-se no campo metafórico e, no primeiro, no campo literal e que ambos os campos estão nitidamente delimitados. Eles são vocabulários incomensuráveis, cuja distinção ocorre pela utilização lingüística que o bípede sem penas faz deles.
Passo 4 ¾ Neste estágio, o estudante é convidado a propor sua narrativa de redescrição das narrativas em que estavam inseridos os problemas e a discutir a pertinência delas com os colegas, com o professor e, enfim, com os livros e outros meios. Este é o momento de criação, de imaginação e, portanto, o auge do processo de criação de metáforas.
Passo 5 ¾ Por fim, o que se tem é o recolhimento das idéias e sugestões vindas das narrativas e suas redescrições para a condução intelectual, moral e estética no campo cultural, social e político de cada um. Cabe aqui a ação política organizada, inclusive a ação política partidária. Porém, é necessário lembrar que a própria formulação de uma narrativa e sua divulgação ¾ a criação de uma nova metáfora que não só garanta direitos democráticos mas que invente outros direitos ¾ já constituem uma ação política.
Se os professores pós-modernos e os teóricos da educação quiserem uma justificativa para esses procedimentos, vão facilmente encontrá-la, no passado, em germe, nas formulações da filosofia da linguagem e do pragmatismo de Nietzsche e William James. Afinal, foram eles os pioneiros na argumentação que borrou a nítida linha que separava o que é metafórico do que é literal. Foi Nietzsche quem, no final do século XIX, colocou a linguagem em um plano articulado ao plano social e definiu a própria verdade como metáfora. No entanto, se os professores pós-modernos e os teóricos da educação quiserem elaborar uma filosofia da educação mais adequada aos procedimentos dos cinco passos anteriores, e, para tal, quiserem utilizar a linguagem atual da filosofia, a leitura dos textos de Donald Davidson é suficiente, principalmente na formulação que é dada por Richard Rorty.
O segredo aqui, para se entender a postura pós-moderna, é questionar o que é a metáfora para Davidson.
A metáfora, na sua definição tradicional, pode ser entendida como apenas a cobertura de um bolo. Ela seria a maneira de descrever as coisas de uma forma que, uma vez clarificada, analisada, traria a verdade, o essencial. A metáfora teria uma mensagem a ser decodificada, que poderia ser apreendida por investigação da semântica. Assim, a metáfora teria um conteúdo cognitivo, podendo ser explicada.
Uma terrível objeção a essa formulação aparentemente tranqüila da metáfora, dada por Davidson, é a de que a metáfora não pode ser parafraseada. Ao se tentar explicar uma metáfora, certamente corre-se o risco de fazer alguma construção teórica sofrível, de mal gosto. Para Davidson, a metáfora não é uma mensagem, não tem um conteúdo cognitivo a ser decodificado, sendo um ato inusitado no meio do processo comunicacional que, embora tenha efeitos de grande impacto sobre o ouvinte, não pretende lhe dizer coisa alguma. É claro que uma metáfora, depois de algum tempo, se for saboreada e não cuspida e esquecida, pode então se adaptar a um jogo de linguagem existente ou forjar um novo jogo de linguagem e, então, se literalizar, ou seja, ganhar valor de verdade. Aliás, como Rorty lembra, nossa linguagem é, na sua maioria, um monte de metáforas mortas. Entretanto, em um primeiro momento, ela não é uma explicação e não tem valor de verdade, uma vez que não está nos quadros do jogo semântico tradicional. Por isso mesmo, seu lançamento em uma conversa é muitas vezes espontâneo, e quem a lançou pouco sabia o que ela significava (ela não significava!). Assim, é provável que o movimento negro, na época de seu auge, não saberia explicar o que era black is beautiful! Do mesmo modo, agora seria uma péssima idéia tentar explicar o que é gay is good. Não há paráfrase nem explicações para gay is good, e qualquer tentativa destrói rapidamente a metáfora e todo o movimento de impacto que ela causa na mentalidade conservadora. Todavia, apesar de não ter mensagem, ela é forte o suficiente para estar envolvida com a busca de criação de novos direitos democráticos, como, por exemplo, a discussão, em vários países, sobre a legitimidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo, pois, afinal, gay is good!
Essa nova filosofia da educação em nada solapa os ideais das filosofias da educação modernas; pelo contrário, os potencializa. Quem faz metáforas em prol da criação de novos direitos está, certamente, colaborando com a idéia humanista de que a educação é aquisição de autodeterminação, como em Herbart. Também está favorecendo a diversidade e a liberdade e, portanto, alinhando-se com Dewey na valorização da democracia. Além disso, pode fornecer "autoridade semântica" para os grupos oprimidos redescreverem-se e, assim, ganharem vez e voz na sociedade à medida que puderem colocar seus vocabulários alternativos, seus jogos de linguagem secundarizados, como elementos também contáveis na sociedade. Com isso, colabora-se com Paulo Freire na luta por uma educação em favor do oprimido pelo fim da opressão. A teoria educacional pós-moderna, nesta filosofia da educação, é a busca de realização dos melhores ideais modernos.

NOTA
Editor do site Filosofia e Filosofia da Educação ¾ www.filosofia.pro.br

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GHIRALDELLI Jr., P. Richard Rorty ¾ a filosofia do Novo Mundo em busca de mundos novos. Petrópolis, Vozes, 1999. [ Links ]
__________ . O que é Filosofia da Educação? Rio de Janeiro, DPA, 2000. [ Links ]
__________ . O que você precisa saber em Filosofia da Educação em tempos pós-modernos. Rio de Janeiro, DPA, 2000. [ Links ]


Fonte
São Paulo em PerspectivaPrint ISSN 0102-8839São Paulo Perspec. vol.14 no.2 São Paulo Apr./June 2000doi: 10.1590/S0102-88392000000200005

Filosofia. Educação e Filosofia da Educação

Apontamentos sobre educação, filosofia e filosofia da educação

Ronaldo Campos

Nas últimas décadas, tem se tornado muito frequente o discurso acerca da crise da educação. Com certeza, tal crise não se restringe apenas ao universo das escolas e das práticas educativas da nossa sociedade. Essa crise pode ser apreendida num primeiro momento como uma crise na maneira como concebemos a educação. Sabemos que o sentido e o significado da educação tradicional já não é mais adequado para os padrões sócio-ideológico-político-econômico-cultural que vivemos. Em suma, estamos vivenciando uma crise de racionalidade.
Pensar a educação nesse mundo globalizado (que busca ser inclusivo) não é tarefa das mais simples. Hoje em dia, vivemos uma época de profunda diversidade e de multiculturalismos. Tal heterogeneidade das leituras de mundo também é marcada pela impossibilidade das teorias tradicionais de explicar a nova realidade. Vivemos a sensação do caos, da falta de um arcabouço teórico que nos localize e nos dê segurança no mundo.
Na contemporaneidade, somos invadidos por um turbilhão infindável de informações. Podemos conhecer o mundo em instantes. Temos milhares de possibilidades para descobrir as mais diferentes e variadas formas de estudos, projetos e práticas sobre a educação (ou sobre qualquer assunto) das culturas existentes no planeta. Esse acesso ilimitado e diariamente aberto a todos nós acaba por nos impor uma série de responsabilidades. A informação disponível não pode ser utilizada sem critério ou de maneira leviana. A maneira como essa informação deve ser divulgada também tem que passar por um crivo que verifique o impacto dessa no nosso dia a dia. Temos que ter clareza acerca das possibilidades de compreensão do processo educativo. Além disso, não podemos esquecer que a educação não é um trabalho isolado do pedagogo ou do professor. A prática educativa (e o próprio pensar a educação) exige uma visão interdisciplinar.
O fazer e o pensar a educação exige uma intecionalidade. Pois, a educação é um tipo de ação política. É um processo individual e, ao mesmo tempo, coletivo. Não existe individuo sem cultura. O ser humano desde o seu nascimento faz parte de uma sociedade (cultura). Ele aprende as regras, os significados simbólicos e os interditos para viver em sociedade. Ou seja, a educação (= socialização) é uma forma de introdução do Homem no universo cultural. Ele recebe a cultura pronta, mas também tem o poder (ao longo da sua existência) de contribuir para manter ou alterar essa cultura.
Então, se toda prática educativa é intencional (tem motivações e gera conseqüências), a educação sempre busca formar um individuo partindo sempre de um conceito ou idéia já formulado com determinados fins e objetivos previstos (o que não quer dizer que esses fins e objetivos serão alcançados plenamente). Toda abordagem educativa possui uma estrutura com idéias e pressupostos bem definidos, estudados e teorizados, isto é, toda proposta educativa tem que apresentar um certo conjunto conceitual que consiga garantir a coerência interna da proposta educativa e das articulações entre a teoria e a prática. O que permitirá ao condutor do processo educativo uma ação intencionalmente pensada. Ou seja, cabe ao professor distinguir entre aqueles paradigmas (que podem orientar a sua ação) com o objetivo de perceber as várias alternâncias da maneira como foi (e é) pensada a educação ao longo da história; concomitantemente, ele deverá também perceber quais foram (e quais são) as idéias mais pertinentes e as menos relevantes.
Para que essa intencionalidade ocorra, o professor tem que definir quais serão as suas ferramentas teóricas, estabelecendo pontos de contados para conduzir a sua interpretação do mundo e do processo educativo. O educador tem que ler o mundo. Cabe a ele apreender os dados e informações da realidade e interpretá-los com base nas teorias e paradigmas produzidos pela ciência. O que acabará por gerar a fundamentação da sua prática. O seu agir será intencional e conscientemente formulado; a sua ação será geradora de uma prática pedagógica.
A filosofia da educação é sem sobra de dúvidas uma importante ferramenta para o professor construir os seus pontos referenciais que conduzirão a sua prática pedagógica, pois, essa é uma maneira de pensar criticamente e de modo reflexivo a racionalidade que organiza e orienta as ações pedagógicas. Podemos perceber a partir da filosofia tanto o homem como o mundo. Ou seja, o saber filosófica nos permite entender o mundo a partir de determinados conceitos de Homem e de mundo.
Mas, quando tentamos definir filosofia ou filosofia da educação, percebemos que esta não é uma tarefa das mais simples, uma vez que existe uma pluralidade conceitual que varia de acordo com a concepção epistemológica defendida pelos diferentes filósofos. Alguns autores, se preocupam com a essência, outros se voltam para o fenômeno e para a experiëncia.
Segundo Demerval Saviani, a filosofia é uma reflexão radical-rigorosa acerca dos problemas apresentados pela realidade. Então, por analogia, a Filosofia da Educação é também uma reflexão radical, rigorosa e de conjunto sobre os problemas que a realidade educacional apresenta.
Cabe ao educador pensar sobre a sua prática cotidiana, isto significa que ele não faz uma simples enumeração das teorias da educação de a partir das concepções pedagógicas. Agir, pensar a prática pedagógica do professor exige uma certa habilidade de identificar, analisar e resolver os problemas da educação. Ou seja, a função da Filosofia da Educação se encontra na possibilidade de disponibilizar para os educadores um método de reflexão para analisar os problemas educacionais, abarcando toda a sua complexidade e encaminhando a solução de problemas (conflito entre filosofia de vida e ideologia na atividade do educador, a relação entre meios e fins da educação, a relação entre teoria e prática, os condicionamentos da atividade docente, até onde se pode contá-los ou superá-los)
Os educadores devem compreender toda prática pedagógica está embasada numa teoria, numa filosofia, isto é, em uma concepção de mundo, de educação e de homem que se pretende formar. Esta deveria ser a primeira definição a ser feita, antes mesmo de se definir quais os objetivos da educação.
A educação tradicionalmente tem sido pautada pelos princípios do silêncio, da obediência, do autoritarismo, da hierarquia, da ordem, da passividade, da dissimulação, (fingir o ensinar e o aprender) da omissão, da exclusão, da fraude, da rotulação e da desigualdade. Como resultado dessa prática espera-se que o aluno seja um cidadão crítico, atuante, participativo, honesto, solidário, criativo e humano. O que percebemos é que a Escola muitas vezes tem um discurso pautado de acordo com certas ideologias que na prática não são postos em prática.